A torneira secou quando mais precisávamos dela: depois do jantar. Foi mesmo na hora de lavar a loiça, que se acumulava em pilhas caóticas no balcão da cozinha. “Não há água”, anunciou uma filha, de lá regressando.
Instalou-se na família a frustração hídrica, um dos piores pesadelos do ser urbano. Vive-se sem luz ou sem gás. Mas da água é impossível prescindir. Imediatamente cancelaram-se os planos mais imediatos. Quem queria tomar um duche teve de adiar. Quem pretendia escovar os dentes teve de improvisar. Quem tinha urgências mais prementes teve de se conter.
Não sei porquê, mas na minha zona tal circunstância é recorrente. Várias vezes por ano, a água é cortada por alguma razão. A mais corriqueira é a tradicional rotura, sinal de alguma esclerose no sistema circulatório do abastecimento local.
Para triste consolo, a situação já foi muito pior. Há pouco mais de 20 anos, a construção de uma auto-estrada infligiu severas penitências à higiene colectiva no meu bairro. Cada vez que se cavava um buraco, rebentava um cano. E cada vez que rebentava um cano, abria-se um novo buraco, num ciclo virtuoso para as empreiteiras. Um engenheiro com vocação médica teria receitado uma angiografia à rede, para saber pelo menos por onde passava a tubulação. Porém não havia tempo nem dinheiro, apenas o desejo de progresso.
Este carrocel desenvolvimentista apanhou-me num momento crítico, de paternidade recente. A água falhou até no dia em que trouxe a nossa primogénita, recém-nascida, da maternidade para casa. Abri a torneira, e nem uma pinga. Saí disparado em busca de uma solução, que encontrei em dois grandes garrafões de 20 litros na drogaria do bairro. Fui aos bombeiros, enchi-os com a água de apagar fogos e só então vi o quanto aquilo pesava. A primeira tentativa de levantar os 40 litros resultou em imediato colapso músculo-esquelético.
Mais de duas décadas volvidas, continuo a utilizar os garrafões, para desespero da ossatura lombar. E eis que, a meio de Agosto, mais uma vez estávamos sem água.
Segundo as estatísticas oficiais, em cada 100 quilómetros de rede do sistema de abastecimento do meu concelho há 42 roturas por ano. Dito de outra forma – e é sempre bom ter duas medidas para confundir o consumidor –, há 2,1 cortes de água por cada 1000 ligações à rede.
Estes números não têm significado, comparados com o desespero instantâneo que é abrir a torneira e não sair nada. Estamos tão acostumados com o milagre da água sempre disponível, que não vislumbramos o que é ter de ir atrás dela, como naquela noite.
Quando fui escovar os dentes, alguém já tinha deixado na casa de banho um copo com água. Estava a meio. Fui à ganância, molhei a pasta, bochechei duas vezes, lavei a escova e quando dei por mim, tinha dado cabo daquela preciosa reserva.
Com um pedregulho instalado na consciência, tratei de repor o conteúdo do copo, utilizando uma garrafa de litro e meio de água que estava na cozinha há meses. Com ela na mão, naquele momento, senti o que é ser rico. Uma das poucas regras em que se pode acreditar nas teorias económicas é a de que um produto vale muito mais quando é escasso.
Dormi mal e só sosseguei quando, ao meio da noite, ouvi a água de novo a encher o reservatório do autoclismo, onde cabem dez litros de fortuna líquida.
No dia seguinte ainda fiz um teste e concluí que um copo de água dá para seis bochechadas – isto é, para a família toda mais um convidado. Ou seja, para poupar água, o melhor é eliminar as torneiras.
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