Assim é o antigo Convento da Nossa Senhora da Conceição, em Montemor-o-Novo. O dono diz que é só "uma casa de namorados". O padre? "Não sou eu que mando". Fomos lá espreitar, com o Manuel e o Zeca.
“Bem, vamos à missa?”
Quem pergunta é Manuel, que está nesta altura encostado ao balcão de um café em Montemor-o-Novo. Estamos em julho, é sexta-feira e já passa das 23h00. Manuel age como tal. Veste calções e tshirt, está com chinelos de enfiar no dedo e repousa um dos pés, descalço, em cima do outro. Segura uma mini com uma mão e com a outra acaricia a barriga redonda e descaída em movimentos circulares de indisfarçável orgulho.
“Vamos, já está na hora”, responde-lhe Zeca, depois de confirmar as horas no relógio. Tomou banho há poucas horas e a prova disso é o brilho do gel que usa nos poucos cabelos que lhe restam. Mesmo assim, ainda cheira a suor de mais um dia passado a trabalhar de sol a sol no campo. Zeca bebe de um sorvo a pouca água que resta da sua garrafa e faz sinal para sair. Manuel faz o mesmo com a sua mini e pousa a garrafa com estardalhaço no balcão. Depois, procura com o pé descalço o chinelo até agora inutilizado e segue os passos de Zeca.
Cruzando as ruas desta cidade do distrito de Évora sem pressa, demoram menos de cinco minutos até à ladeira que dá acesso ao Monte da Nossa Senhora da Conceição. Ao subir esta estrada de terra e inclinada, o carro deixa um rasto de pó para trás. Enquanto isso, no topo do monte, um néon com três letras vermelhas pisca.
PODE VER VÍDEO AQUI NESTE LINK ABAIXO
De um lado é a igreja, do outro é um bordel (e no meio está a crise)
Vencida a subida, cruzam um par de pilares — cada um encimado por uma escultura negra de um leão de peito inchado, desafiante, pousado em cima de um sinal de trânsito proibido onde se pode ler “propriedade privada” — e logo à frente passam o portão. Por fim, param ao pé de uma oliveira. Estão lá mais dois carros, o que deixa bastante espaço de sobra no parque de estacionamento. Desligam o motor, saem da viatura com calma e, de igual forma, fecham as portas. De seguida, os dois homens viram as costas um para o outro e abrem as braguilhas. A noite está calma e abafada, mal corre uma aragem. No topo deste monte, só se ouve o som da urina dos dois homens a cair no chão de terra batida.
De um lado é a igreja, do outro é um bordel (e no meio está a crise)
Vencida a subida, cruzam um par de pilares — cada um encimado por uma escultura negra de um leão de peito inchado, desafiante, pousado em cima de um sinal de trânsito proibido onde se pode ler “propriedade privada” — e logo à frente passam o portão. Por fim, param ao pé de uma oliveira. Estão lá mais dois carros, o que deixa bastante espaço de sobra no parque de estacionamento. Desligam o motor, saem da viatura com calma e, de igual forma, fecham as portas. De seguida, os dois homens viram as costas um para o outro e abrem as braguilhas. A noite está calma e abafada, mal corre uma aragem. No topo deste monte, só se ouve o som da urina dos dois homens a cair no chão de terra batida.
Depois de um confirmar que o outro já terminou, avançam. “Lá vamos nós à missa”, diz Manuel, enquanto os dois se dirigem para um portão de ferro pintado de azul. À medida que se aproximam, começa-se a ouvir um murmúrio de música. Depois, abrem uma nova porta, desta vez de vidro. Chegaram “à missa”. Só que, nesta missa, a música não é de igreja, mas sim êxitos da pista de dança. E, quando os dois alentejanos entram, não são recebidos nem por um padre, nem por outros fiéis devotos e muito menos por freiras. As boas vindas são antes dadas por uma latino-americana chamada Pilar vestida com uma minissaia vermelha, um corpete de cabedal apertado,collants de renda e saltos altos.
“Para subir são 40 euros, cariño“
Parece ser um reflexo natural destes dois homens: assim que chegam ao bar, Zeca e Manuel encostam-se ao balcão e cada um desembolsa 2,5 euros por uma mini — no café onde ainda há pouco estavam, a mesma garrafa de 0,20 centilitros de cerveja custar-lhes-ia um quarto desse valor. Pouco se importam com o preço e até o desculpam. “A cerveja aqui é mais cara, mas vem de minissaia”, diz Zeca. Enquanto isso, Manuel chama a atenção de Pilar, que, respondendo ao gesto que este lhe faz com o dedo indicador, se levanta da cadeira de esplanada onde está sentada e vai para ao pé dele.
“Hola! Qué tal, chico?”, pergunta, de mãos na cintura. “Hola“, responde-lhe Manuel, com um espanhol carregado de sotaque alentejano, enquanto pousa a cerveja no balcão. “Day una voltita, day“, diz-lhe, enquanto ajuda a latino-americana a andar à roda. Ela obedece-lhe com um sorriso na cara, batendo as pestanas enquanto mostra o corpo ao potencial cliente.
É assim que começa o habitual ritual de sedução neste antigo convento de frades Agostinhos que, desde 2002, funciona como um bordel. O bar fica no piso térreo. Ali, entre bebidas e apalpões, e sob as luzes refletidas por uma bola de espelhos e com televisões que mostram fotografias eróticas, as mulheres que lá trabalham tentam convencer os clientes a pagarem o preço necessário para “subirem”. Subir, isto é, ir para o primeiro andar, onde ficam os oito quartos deste bar de alterne. Para lá chegarem, têm de sair por uma porta ao pé do balcão e depois sobem umas escadas exteriores. A partir desses degraus, se olharem para a esquerda, clientes e prostitutas podem ver a igreja da Nossa Senhora da Conceição — onde, apesar da vizinhança em aparente conflito de interesses, se celebra uma missa aos primeiros sábados de cada mês, exceto no verão.
De repente, Manuel e Pilar já estão agarrados um ao outro. As mãos dele, que até agora estavam destinadas às habituais tarefas de segurar uma garrafa e de esfregar a sua portentosa barriga, ocupam-se do corpo dela. Sem que esta pareça importar-se com isso. Aliás, enquanto Manuel lhe apalpa as nádegas e as mamas, a latino-americana lança a mão à virilha do alentejano.
“Eh, foda-se, queres ver que agora vou ter de gastar dinheiro com esta puta?”, pergunta Manuel a Zeca, num tom que fica algures entre o desespero e o prazer. O amigo, ainda encostado no balcão, só se ri. “Hablen español para que yo me entere, hombre!“, reage Pilar, que ainda não domina a língua portuguesa e muito menos o seu vernáculo. Exceção seja feita ao palavrão “caralho”, que grita a alto e bom som quando entende que a situação o pede.
— Mira, chica… Quanto custa para subirmos?
— Para subir são 40 euros, cariño.
Manuel esbugalha os olhos, escandalizado com o preço, e vira-se para o companheiro. “Já viste esta merda? Agora um gajo tem de pagar 40 euros para vir cá mandar uma?”, pergunta. “É o preço a pagar, amigo”, responde Zeca, qual fervoroso adepto do mercado livre e desregulado. “Isto é assim, não há nada a fazer. Há gajas que são autênticos modelos e outras que são autênticos diabos, são feias e gordas. E têm de fazer preços à medida disso. Esta não é uma coisa nem outra, está lá para o meio, portanto 40 euros já não é nada mau”, avalia, rematando com um chavão de feira: “É pegar ou largar”.
Largar Pilar é coisa que Manuel não faz. Depois de ouvir o amigo, dança com ela cara a cara, beijando-a em todo o pescoço e também na face, deixando de fora apenas os lábios vermelhos da prostituta. Ela responde-lhe com redobradas carícias abaixo da cintura enquanto lhe promete, ao ouvido, tudo o que os seus 40 euros lhe podem valer nos quartos do primeiro andar. A meio da lista de promessas, mostra-lhe a língua e agita-a no ar a um ritmo que leva Manuel à loucura, ao ponto de se começar a roçar em Pilar.
— Aqui é roça roça, mas arriba é pum!, pum!, caralho!” — grita-lhe, imitando movimentos pélvicos agressivos e caricaturais, culminando num riso alto e forçado.
— Eu sei, amor, mas 40 euros é muito, amor…
— É muito, caralho?! 40 euros por mi trabajo? Quanto pagas, então?
— 30.
— Por 30 não, no me voy a subir.
Se há um ponto de não retorno entre uma prostituta e um potencial cliente, Pilar e Manuel acabam de atingi-lo. Depois do regateio sem acordo, afastam-se um do outro, lenta mas irreversivelmente. Manuel volta à sua cerveja e Pilar fica entre ele e Zeca num silêncio desconfortável. Dança um pouco, sem mexer os pés, e agita os punhos cerrados alternadamente para cima e para baixo. Enquanto isso, cantarola o melhor que pode a música que está a tocar. “Tonight, I’ll be your naughty girl”, ouve-se. É um dos primeiros sucessos da artista norte-americana Beyoncé, em que esta promete ao interlocutor que, naquela noite, vai ser a “sua menina marota”. Tomara a Manuel que Pilar também estivesse para aí virada, mas, sem 40 euros na mão, não será esse o caso.
Já com um ar de enfado, ela pergunta aos dois homens: “Bem, como é que é? Pagam-me um copo ou não?”. Se o fizerem, a troco de dez euros, ganham mais tempo da sua companhia, atenção e simpatia. Não o fazem. “Bem, então me voy.” E foi.
Ainda a recompor-se do revés que a sua carteira acabou por impor à sua líbido, Manuel volta a pegar na cerveja que deixara no balcão, entretanto já morta, e bebe-a com pressa. Agora, é ele que faz sinal a Zeca para sair. Este, que não se interessou por nenhuma das mulheres que viu hoje, sai sem custo atrás de Manuel, que nem se despede de Pilar.
Ao aproximarem-se do carro, cada um evita pisar a poça de urina que deixou antes de entrar no bar. Já é quase meia-noite quando descem a ladeira que há pouco subiram. Manuel, pouco satisfeito pelo desfecho desta noite, tenta consolar-se com uma nova narrativa: “Fogo, ó Zeca, viste aquela gaja? Fazia-se a mim por tudo o que era lado, estava louca. Eu é que não lhe quis dar troco”. O amigo, que não o contraria, sugere que a noite continue noutro bar de Montemor-o-Novo — desta vez, um que não tem prostitutas. Manuel concorda. Chegados ao fundo da descida, entram numa rotunda e viram na primeira saída. Nenhum deles olha para lá, mas, deste lado do Monte da Nossa Senhora da Conceição, os néons são outros. Em vez do soturno “BAR”, daqui dá para ver um conjunto de luzes brancas. Imaculadas na sua alvura, estão reunidas em torno da cruz de uma capela. No mesmo plano, paredes-meias com este local de culto, estão os quartos para onde Manuel sonhou levar Pilar.
Dos Agostinhos descalços a Vicente Bicho
Como o próprio nome deixa adivinhar, o Convento de Nossa Senhora da Conceição nem sempre foi um bordel. Em 1671, três anos depois de concedida a autorização necessária, ergueu-se ali um convento masculino, destinado à Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, também conhecido pelo diminutivo de Agostinhos Descalços. Primavam por uma vida austera, de sacrifício em nome da fé cristã, para a qual dispensavam mordomias ou confortos de qualquer tipo. Daí o epíteto de descalços.
Em 1808, Junot entrou pela Península Ibérica adentro, a mando do Imperador de França, Napoleão Bonaparte. Montemor-o-Novo não escapou ao saque das Invasões Francesas, que fizeram questão de passar pelo Convento da Nossa Senhora da Conceição. Ao todo, segundo um relatório redigido na altura pelos franceses, as tropas de Junot levaram um total de 12 quilos de artigos de prata. Nestes, constava uma bacia, um jarro e um vaso de comunhão, todos com a inscrição “da Conceição”.
Sete anos depois, em 1815, o convento é encerrado por falta de religiosos. E em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o edifício foi vendido em hasta pública. Aí, passou para as mãos de particulares, que adquiriram o espaço. Mas não foi por isso que o convento ganhou vida — antes pelo contrário. Com o passar dos anos, era como se fosse de todos e de ninguém ao mesmo tempo. A igreja ficou em ruínas e o que sobrava do frágil convento serviu tanto de habitação precária para quem não tinha outra, como de local perfeito para crianças brincarem às escondidas e à apanhada.
O Convento da Nossa Senhora da Conceição foi fundado em 1671 por religiosos dos Agostinhos descalços. Em 1808, as invasões francesas passaram por lá e fizeram um saque considerável. Pouco depois, em 1834, e já sem frades, o edifício foi para hasta pública.
Foi neste estado que o padre José Morais encontrou aquele monte quando, em 1999, assumiu a paróquia de Montemor-o-Novo. E, adivinhando nele um homem de sangue novo, pronto a lançar as mãos ao trabalho, a população abordou-o.
“As pessoas falavam da devoção que também os montemorenses tinham à Senhora da Conceição, falavam muito disso quando eu cá cheguei. Devoção essa que existia e que continua a existir. E então houve uma certa movimentação, talvez até pela mudança de pároco, e fui abordado para deitarmos mão à Senhora da Conceição, que estava em ruínas. E estava. Completamente vandalizada. Depois do 25 de abril houve um vandalismo ainda maior. Não é o 25 de abril que tem culpa disso, mas houve grupos de pessoas que se aproveitaram disso. E a igreja também foi profanada.”
Quando o padre José Morais chegou a Montemor-o-Novo, o Monte da Nossa Senhora da Conceição tinha acabado de ser vendido por uma família abastada daquela cidade a Vicente Bicho, um emigrante que, depois de 36 anos em França e outros sete em Angola, decidiu retornar à terra que o viu nascer.
Por intermédio de uma senhora com reputação de crente e de reconhecidas capacidades diplomáticas, o padre José Morais e Vicente Bicho sentaram-se à mesma mesa. De um lado, o pároco queria garantir que a capela do Monte da Nossa Senhora da Conceição fosse reconstruída e aberta aos fiéis. Do outro, o proprietário do espaço queria garantir que este continuava nas suas mãos. Por fim, chegaram a um acordo. “Um protocolo”, como lhe chama o padre. Nessa altura, ficou escrito preto no branco que, mediante o custeamento de obras de restauro da igreja, esta seria cedida à paróquia num período de 60 anos, renovável.
Assim que o padre José Morais e Vicente Bicho, o proprietário, assinaram o protocolo de cedência da igreja, os fiéis arregaçaram as mangas para ajudarem a reconstruir o local de culto. Uns deram materiais, outros ajudaram nas obras e muitos deram dinheiro. Juntaram, ao todo, 150 mil euros.
Mais do que um pedaço de papel, aquele protocolo foi um reavivar do ânimo dos crentes de Montemor-o-Novo. Empenhados em tornar realidade as obras na igreja, começaram a contribuir cada vez mais para o peditório nas missas. Além disso, cada um contribuiu com aquilo que pôde. Uns deram materiais (tijolos, cimento, e tinta, por exemplo), outros ofereceram os seus serviços e houve ainda quem desse quantias avultadas de dinheiro. No final, juntaram-se 150 mil euros, segundo as contas do padre José Morais.
Quem viu o Monte da Nossa Senhora da Conceição, naquela altura, descreve-o como “um autêntico estaleiro”, com duas obras paralelas a avançarem a todo o vapor. De um lado, a igreja preparava-se para uma segunda chance – é verdade que nunca seria uma grande igreja, até porque nunca tinha sido essa a sua vocação, mas podia, a partir daí, voltar a ser um local onde, em sede própria, os montemorenses pudessem prestar a sua devoção à Nossa Senhora. E, do outro lado, a expensas do industrioso Vicente Bicho, o convento era restaurado e convertido numa estalagem, numa tentativa de atingir o equilíbrio difícil entre a necessidade de modernizar um edifício sem o descaracterizar, ao ponto de este se tornar irreconhecível.
“O odor de Cristo”
A inauguração da igreja estava prevista para o dia 8 de dezembro de 2002, feriado nacional e dia da Nossa Senhora da Conceição – e assim foi. A ocasião foi registada pelo jornal Público, que tinha um repórter e um fotojornalista no local. Dessa vez, a mesma ladeira que Zeca e Manuel subiram naquela noite abafada de julho de 2015, foi calcorreada por uma enorme procissão feita “com toda a pompa e circunstância”, escrevia o jornal. Na frente um carro dos bombeiros transportava uma imagem da Nossa Senhora da Conceição que era seguida por uma fanfarra, grupos de escuteiros e dezenas de populares. Além disso, estavam presentes figuras do clero e também o então governador civil de Évora, o antigo ministro da Agricultura socialista Luís Capoulas.
“É preciso que aqui à volta se respire sempre o bem, a dignidade, a elevação, o odor de Cristo.”
Já com a procissão no topo da colina, a igreja da Nossa Senhora da Conceição foi finalmente reaberta. Como é natural das inaugurações, foi descerrada uma lápide alusiva ao renascimento da igreja e foram feitos discursos de circunstância. Houve um, porém, que levantou dúvidas. Na altura, o arcebispo de Évora, D. Maurílio Gouveia disse aos fiéis: “É preciso que aqui à volta se respire sempre o bem, a dignidade, a elevação, o odor de Cristo”.
Esta mensagem pode muito bem ter sido dirigida à vizinhança da igreja. Quando foi inagurada, poucos meses antes da igreja, a Estalagem da Nossa Senhora da Conceição abriu sob a fachada de um estabelecimento de turismo rural com um bar no piso térreo – tendo obtido para isso os alvarás necessários. Só que depressa se ficou a saber por Montemor-o-Novo e redondezas, que a única coisa que ali havia de “estalagem” era o nome. Na reportagem do Público, duas mulheres trocavam algumas impressões quanto ao destino dado àquele espaço. “Estalagem? Só se for de gado bravo”, comentava uma. E a outra lamentava-se: “Ainda eu queria que a minha filha viesse trabalhar aqui para a receção… Isto é uma pouca-vergonha”.
A seguir ao Público, seguiram-se alguns órgãos de comunicação social nacionais, dando uma atenção passageira ao assunto que, para alguns montemorenses, foi um duro golpe. Ao Observador, um comerciante local que contribuiu no esforço de reconstrução da igreja, queixa-se da direção do foco mediático. “Nós temos tantas igrejas bonitas cá e os jornalistas só dão atenção àquela porra”, queixa-se em voz alta, depois de pedir para não ser identificado. “Andam para lá com as câmaras para quê?!”, insurge-se, indignado, como se, durante os últimos 13 anos, as objetivas ainda não se tivessem desviado do néon vermelho a piscar BAR, B-A-R, BAR.
O padre José Morais, que ainda hoje é a figura máxima do clero de Montemor-o-Novo, classifica esses dias de “desagradáveis”. “Naquela altura, custou bastante às pessoas. O senhor coloque-se na posição das pessoas que se mobilizaram para recuperarem aquela igreja. Deram o seu próprio dinheiro. E, depois, de um momento para o outro, viram a festa da inauguração tratada da maneira que foi pelos meios de comunicação social… foi isso que custou às pessoas”, recorda, sentado numa sala de visitas na casa paroquial de Montemor-o-Novo, na rua 5 de Outubro. “Aaaai, uma igreja que foi ali ao lado de não sei quê, não sei que mais, tá-tá-tá”, diz, esbracejando de forma frenética, numa tentativa de representar o afã mediático sentido nesta pequena cidade do Alto Alentejo naquele dezembro quente de 2002.
“Não sou eu que mando”
Hoje, garante, já ninguém fala deste assunto. “O impacto a nível local é diminuto.” Atualmente, a igreja só abre aos primeiros sábados de cada mês – à exceção do verão, altura em que fica fechada. Além disso, a todos os 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, é feita uma procissão que culmina naquela pequena igreja ladeada pela estalagem de Vicente Bicho.
O padre José Morais acredita que não lhe cabe a função de fazer juízos morais em relação ao que se passa na porta do lado da sua igreja. “Se me pergunta se eu daria o meu aval para acontecer ali o que acontece?…”, começa, travando a tempo antes de dar a sua resposta. “Epá, não sou eu que mando. Não sou eu que mando. Não sou eu que mando.”
"Houve uma altura em que eu ia lá celebrar missa e as senhoras do bar iam à missa. É curioso. Isto foi na altura em que morreu o filho do proprietário do monte, acho que elas ficaram muito abaladas com aquilo tudo. E então foram lá umas quantas vezes, mas agora já não. Digamos que são atividades de âmbitos diferentes."
“Eu, como responsável da paróquia, sendo abordado sobre o assunto, eu digo que não tenho nada a ver com ele.” Acrescenta até que aquilo que se passará — “não sei ao certo o que é, eu nunca fui lá”— não é muito diferente daquilo que acontece na sua rua. “Mesmo aqui, ao pé da minha casa, há um sítio desses, também”, diz, referindo-se ao Habitus, uma casa de alterne que, devido à forte concorrência — por volta de 2005, Montemor-o-Novo chegou a ter sete estabelecimentos deste tipo — declarou falência há cerca de uma década. E, voltando ao início do seu raciocínio, deita as culpas na cobertura jornalística da inauguração da igreja: “Na altura as pessoas ligaram àquilo, sobretudo por causa da relevância que os meios de comunicação social deram ao assunto. Mas hoje não tem relevância nenhuma. As pessoas já não ligam a isso”.
Não é caso de Rita Aragão, uma das caras mais assíduas nas cerimónias religiosas de Montemor-o-Novo. Aos 79 anos, alguns conhecem-na na cidade por ser casada com um antigo polícia, mas a maior parte sabe quem ela é graças à sua devoção católica. “Depois de ter sido operada aos pés deixei de poder dar o mesmo que dava noutras alturas”, justifica-se. Ainda assim, continua a fazer parte da Confraria da Nossa Senhora da Conceição, a entidade responsável pela organização da procissão anual de 8 de dezembro. Na altura da reconstrução da igreja, deu dinheiro para as obras – não foi muito, nem pouco, foi a conta certa. “Dei o que pude, naquela altura, porque eu nem sequer tenho reforma, portanto tudo o que dei foi com muito sacrifício.”
“Eu acho que não se deve misturar as águas. Elas devem estar muito bem separadas, que é para não haver confusão nenhuma entre uma coisa e outra"
Quanto à vizinhança da igreja, Rita Aragão não tem nada de bom a dizer. “Eu acho que não se deve misturar as águas. Elas devem estar muito bem separadas, que é para não haver confusão nenhuma entre uma coisa e outra”, diz peremptoriamente, lamentando que “patrimónios religiosos sejam assim vendidos ao desbarato, como se já valesse tudo”. “As igrejas não podem estar ao lado de locais de diversão noturna deste tipo, que não têm moralidade nenhuma, não têm decência.”
“Deus Nosso Senhor diz-nos que não somos ninguém para julgar os outros e as ações deles. Mas a pessoa que comprou aquilo devia ter tido a moral de não fazer daquilo uma coisa assim. O dono daquilo julga que pode fazer lá aquilo que bem entende, parece que vive na ideia de que também é dono da igreja.”
Um bar de namorados
É precisamente pela questão da propriedade que Vicente Bicho, o dono do Monte da Nossa Senhora da Conceição, começa a falar com o Observador. A princípio, marcámos uma entrevista presencial, mas o ex-emigrante acabou por não comparecer. Assim, a conversa foi feita por telefone.
“Aquilo é tudo meu! O convento é meu, a igreja é minha, o olival é meu, e o monte é todo meu! E comprei aquilo tudo com o dinheiro que andei a juntar. Foi do meu trabalho em França, estive lá 36 anos e depois outros sete em Angola, lá em Luanda! Você faz ideia do que são tantos anos? Então depois cheguei a Montemor-o-Novo e quis comprar aquilo, pronto. E ninguém tem nada a ver com isso! Eu pago os meus impostos, dou o meu dinheiro ao Estado, o governo tem lá o meu dinheiro. Oiça, eu não tenho nada a esconder, se quiser aponte aí o meu número de contribuinte, eu digo-lhe já, é o 1…”
"Aquilo é um bar como todos outros. Você vai lá para beber um copo e pronto, é o que tantas outras pessoas fazem. Oiça, aquilo qualquer pessoa pode ir lá, aquilo está sempre de porta aberta. Homens, mulheres, crianças… Qualquer um pode ir lá."
Vicente Bicho, conhecido simplesmente como “o Bicho”, não é um homem qualquer em Montemor-o-Novo. Além de ser proprietário do referido monte, é também dono de várias empresas que funcionam em torno do setor automóvel – umas vendem carros, outras reparam-nos e uma outra trata de rebocá-los sempre que necessário. No estrangeiro fez fortuna com empresas de camionagem. A troco de muito sacrifício e trabalho, garante o próprio e confirmam muitos montemorenses, que o descrevem como um “homem de trabalho”, “uma máquina” que, porém, “é de trato difícil” e tem um “péssimo feitio”. Ao Observador, desculpa-se pelo tom inicial do telefonema. “Você desculpe lá, não ligue, isto não é defeito, é feitio.”
De todas as pessoas com quem falámos em Montemor-o-Novo, Vicente Bicho é a única a negar que a Estalagem da Nossa Senhora da Conceição seja um bar de alterne. Quando lhe fazemos a pergunta, chega a questionar-nos: “É o quê? Diga lá outra vez que eu não entendi lá muito bem daquilo de que me está a falar”.
“Aquilo não é bar de alterne coisa nenhuma, mas quem é que diz que é um bar de alterne? Aquilo é um bar como todos outros. Você vai lá para beber um copo e pronto, é o que tantas outras pessoas fazem. Oiça, aquilo qualquer pessoa pode ir lá, aquilo está sempre de porta aberta. Homens, mulheres, crianças… Qualquer um pode ir lá! As pessoas podem dizer o que lhes apetece que não é por isso que elas passam a ser verdade. Eles também podem aí andar a dizer que eu sou paneleiro, ou que eu sou travesti, e não é por isso que eu passo a andar de saia na rua!”
Perante a rejeição de a estalagem se tratar de um bordel, perguntamos-lhe, então, por que razão é que aquele espaço é frequentado por mulheres que, a troco de dinheiro, oferecem serviços sexuais aos clientes (todos homens) que ali se deslocam.
“Oiça, aquilo é uma casa como há tantas outras. Aquilo tem lá umas namoradas que se encontram com os seus vários namorados e que depois vão lá para os quartos fazer o que bem entendem.”
Os problemas de 2005…
Não foi esse o entendimento que a Guarda Nacional Republicana teve em 2005, quando fez uma rusga ao bar de Vicente Bicho. Contactado pelo Observador, o responsável pelas relações públicas da GNR no distrito de Évora, o capitão Ricardo Samouqueiro, não adianta pormenores quanto a essa operação. Ainda assim, numa reunião da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo feita a 26 de janeiro de 2005, o vice-presidente da autarquia referia ter recebido da GNR um relatório que referia terem sido “recolhidos indícios ou mesmo provas” de que o “estabelecimento ‘A estalagem’”, tal como outros dois cafés/restaurantes ali mencionados, “é utilizado para a prática da prostituição”.
A propósito, a Câmara deliberou, por unanimidade, a revogação dos alvarás ao estabelecimento de Vicente Bicho e determinou “o seu consequente encerramento” por funcionar com uma “finalidade diferente” da prevista.
Um mês depois deste desfecho, conforme pode ser lido noutra ata de reunião da Câmara, Vicente Bicho requereu a “emissão de autorização de utilização para o estabelecimento de bebidas (bar) sito no Convento da Sr.ª da Conceição”. Em abril, depois de obter parecer da Comissão de Vistorias, foi-lhe concedido esse alvará por unanimidade. E em agosto conseguiu obter também licença “de utilização para estabelecimento de Hospedaria”. Apenas um pedido de Vicente Bicho levou resposta negativa, quando quis que o bar pudesse estar aberto num horário mais alargado. Naquela altura, a licença referia que o estabelecimento abria das “09 às 00,00 horas” e o proprietário queria que este passasse a funcionar “das 06 às 02 horas”. A Câmara não cedeu, evocando “os precedentes que têm envolvido o funcionamento do estabelecimento em questão”.
… e os problemas de 2015
Foi assim em 2005 e, até 2015, poucas coisas mudaram. Ainda assim, houve três alterações de relevo nestes dez anos.
A primeira pode ser vista na placa colocada à entrada da propriedade. Lá, pode ler-se que o espaço está aberto das 16h00 às 04h00 – e facilmente se repara que, no lugar do 4, que está feito à mão, já esteve um 0. Através de uma leitura das atas da Câmara, percebe-se que não foi dada nenhuma autorização para o horário ali descrito.
Outra alteração tem a ver com a gerência do espaço. Quando foi inaugurado, era o filho de Vicente Bicho, de seu nome Sidónio, quem explorava a casa de alterne. Depois, em 2007, este veio a morrer num trágico acidente de carro. Sem energia para cuidar do espaço, e afetado pela morte do seu único filho, Vicente começou a alugar o Convento da Nossa Senhora da Conceição a outras pessoas ou empresas. Uma delas foi a Coyote, uma cadeia de casas de alterne espanhola espalhada pela fronteira de Espanha com o Alentejo, de onde chega a maior parte dos clientes. Nesse período, o bar passou a ter o nome temporário de “Estalagem do Coyote”. No final, foi sol de pouca dura. “Os espanhóis lá do cabeço”, como eram referidos à boca pequena pela cidade, saíram do espaço por volta de janeiro de 2015 – a única coisa que sobra desse tempo é um site e um número de telefone desativado. Depois, foi para lá um “marafado”, um algarvio, que ainda hoje explora o espaço como pode. O que nos leva à terceira, e maior, alteração ali sentida. Neste caso, explicada por Zeca e Manuel.
Encostado ao terceiro balcão desta noite, Zeca garante que a “Estalagem” não tem um futuro longo pela frente. Longe vão os bons tempos em que este alentejano, conhecedor de vários bordéis em todo o país e também em Espanha, sentia orgulho por saber que o melhor deles todos era na sua terra. “Aquilo lá era muita bom. Digo eu, que sei do que falo. Uma vez fui à Quicas, aquela casa lá no Vale de Santarém, e aquilo ao pé do que a Estalagem era… não é nada! Não tem nada a ver, isto aqui era muito melhor. Em termos de condições, higiene, mulheres, tudo. Cada quarto tem um WC, dá para tomar banho… Não era cá como outros sítios, que se for preciso metem mais do que uma pessoa em cada quarto.”
Os tempos são de crise – e a Estalagem não passa ao lado deles. Segundo confiou ao Observador uma pessoa conhecedora do espaço e do seu funcionamento, o atual gerente do espaço já não paga a renda há alguns meses. O valor acordado com o proprietário (à volta de 3 mil euros) é inatingível porque, pura e simplesmente, já não há clientes. A falta de retorno para um investimento tão avultado parece ser uma fonte de preocupação para Vicente Bicho — pouco depois de estarmos ao telefone com ele, ligou-nos o seu contabilista. “Diga-me lá uma coisa que eu não entendi bem, você é jornalista ou está interessado em alugar aquilo?”
“Uma vez fui à Quicas, aquela casa lá no Vale de Santarém, e aquilo ao pé do que a Estalagem era... não é nada! Não tem nada a ver, isto aqui era muito melhor. Em termos de condições, higiene, mulheres, tudo."
Tal como Zeca, Manuel fala dos melhores tempos da Estalagem da Nossa Senhora da Conceição com a saudade a bater na voz. “Aquilo quando abriu… Mal dava para entrar lá! Estava sempre cheio, nem se conseguia abrir a porta e até havia fila para irmos às gajas”, conta com um sorriso nostálgico. “O parque de estacionamento estava sempre cheio, até havia gajos que batiam no carro dos outros quando iam a estacionar, só por causa da falta de espaço! E havia lá com cada gaja…” À falta de palavras, conclui a frase com um assobio.
Zeca, um homem realista, contrapõe: “Olha, eu cá não vejo lá nenhum avião agora, nem dá vontade. Aquilo assim não dura muitos mais dias… Uma casa daquelas vazia, com os gastos que aquilo tem… Não dura muito, não”, vaticina Zeca.
“É uma pena”, remata Manuel.
“Aquí hay mucha crisis”
Já são quase 02h00 e Pilar, a mulher que Manuel tanto cobiçou, ainda não conseguiu convencer nenhum cliente a gastar 40 euros em troca dos seus préstimos. Quando voltamos a encontrá-la naquela noite de ar quente, tem à sua volta um homem que aparenta ter mais de 70 anos. Está obrigada a dar-lhe atenção, uma vez que ele lhe pagou uma bebida, mas não parece estar muito motivada.
Vestindo calças de pano com a braguilha aberta, a caírem-lhe pela cintura abaixo e com uma camisa aberta até ao início da curva da barriga em forma de redoma, o homem anda à volta de Pilar como se ela fosse uma estátua num museu de cera. Mexe-lhe e levanta-lhe a minissaia, rindo-se como uma criança de cada vez que expõe as nádegas da latino-americana às luzes da bola de espelhos. De vez em quando fala-lhe, num tom invariavelmente alto e abrutalhado. Pilar não consegue decifrar o seu sotaque carregado, mas ri-se na mesma — até porque ele está tão bêbedo que, à medida que anda à sua volta, vai tropeçando nos próprios pés e promete uma queda aparatosa a qualquer momento.
À margem deste espetáculo, Pilar diz-nos que tem 28 anos e que é prostituta há cinco — a grande maioria deles passados a trabalhar em Espanha. Na verdade, esta é a primeira vez que está em Montemor-o-Novo e, até agora, só tem defeitos a apontar à cidade alentejana. Sente-se como se se tivesse metido num buraco.
“Aquí hay mucha crisis”, queixa-se. “Em Espanha ganho 65 euros para fazer o serviço, aqui só peço 40 e mesmo assim oferecem-me 30, 20… Muitos deles nem sequer me pagam uma bebida, e isso só custa 10 euros! 10 euros, amor?! Isso não dá para nada, não dá para as minhas despesas. Ainda hoje fui ao cabeleireiro pôr-me toda bonita, alisei o cabelo, pintei tudo, e agora, ó…”
Este “ó” é acompanhado com um dedo que, apontado, varre o bar de uma ponta à outra.
“… una mierda, Dios mío.”
– – –
Nota: Manuel, Zeca e Pilar são nomes fictícios
Nota: Manuel, Zeca e Pilar são nomes fictícios
Texto e vídeo: João de Almeida Dias
Ilustrações: Andreia Reisinho Costa
Ilustrações: Andreia Reisinho Costa
Sem comentários:
Enviar um comentário