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segunda-feira, 30 de julho de 2018

Doente psiquiátrico deserdou irmã e deixou fortuna à UNICEF. "Intervalo de lucidez", diz tribunal




Testamento feito em Lisboa por homem com historial de problemas psiquiátricos foi contestado pela irmã. Em causa imóveis a valer 1,5 milhões de euros. Juízes dizem que é válido: "A existência de incapacidade não é incompatível com a coexistência de intervalos lúcidos, que neste caso existiam."


 


Pode um homem com um historial de problemas psiquiátricos, incluindo vários internamentos compulsivos, estar capaz de fazer um testamento um mês antes de se suicidar? A resposta foi dada por dois psiquiatras, como testemunhas no notário de que o lisboeta que morreu aos 53 anos estava na posse das faculdades, e por duas decisões judiciais que se sustentam nesses peritos e nos "intervalos de lucidez" que um doente psiquiátrico pode ter como "pessoa não só inteligente como lúcida e esclarecida".

A herança de cerca de 1,5 milhões de euros em imóveis foi destinada à UNICEF, que a defendeu em tribunal como legítima, perante a contestação da única irmã do falecido, autora da ação judicial, que alega estar o irmão num período de esquizofrenia paranoide quando nomeou os herdeiros. Os juízes validam o testamento, mas ainda há possibilidade de recurso.

Fernando suicidou-se em Lisboa em 8 de junho de 2015. Um mês antes, no dia 7 de maio, celebrou o testamento num cartório notarial de Lisboa, na presença de dois conhecidos psiquiatras, Luís Gamito e António José Albuquerque, este acompanhava-o como seu médico desde 2002. Foi à segunda tentativa. Na primeira o notário exigiu as testemunhas quando ouviu Fernando dizer que tinha uma depressão. Todos os bens (sobretudo lojas e apartamentos em Lisboa) foram deixados ao Comité Português para a UNICEF.

Pouco antes da morte, Fernando enviou um e-mail à UNICEF, com um softwaretemporizador, onde anunciava o seu suicídio, com local e dia descritos, o que se confirmou. Dizia desejar que o seu funeral, que pagou antecipadamente a uma funerária, fosse organizado pela instituição, sua única herdeira. Deixou ainda exigências, entre ser cremado e não haver velório, que incluíam o seguinte pedido: "O recipiente metálico com acabamento de 'aço escovado' onde as minhas cinzas serão guardadas terá a seguinte inscrição e gravura: FS 1962-20??, Más Cabrón que Bonito, Too damn to steal, Too smart to work." E que a herança chegasse intacta "às crianças que desesperadamente necessitam".

"Da intenção testamentária não retira este tribunal, o exercício de uma vontade, deturpada pela doença, por períodos de alucinação ou de psicose, que distorcessem a realidade", dizem juízes

Quando o e-mail chegou à UNICEF, já estava morto. A instituição tinha recebido Fernando em maio e o testamento ficou depositado. Com a sua morte, a UNICEF aceitou a herança, à base de imóveis, avaliados em cerca de 1,5 milhões de euros. Estão já sob guarda da instituição, embora provisória. Fernando tinha deixado no testamento que se houvesse impedimento ou rejeição, a herança iria para a Cáritas. Não foi o caso, a UNICEF aceitou o testamento.

Transparente e claro, diz a UNICEF
Margarida Cordeiro, responsável pela angariação de fundos da UNICEF, foi a pessoa que recebeu o e-mail de Fernando a dar conta da sua intenção, com as referidas exigências, e que antes tinha reunido pessoalmente com ele por causa do testamento. "Falei com ele como acontece com outras pessoas que pretendem deixar bens à UNICEF. Foi um encontro normal, como acontece com qualquer outra pessoa", recordou ao DN, confessando "incómodo" por ter de falar sobre o assunto na praça pública. "Não fomos nós que colocamos a ação em tribunal. Recebemos o testamento e o conselho de administração e o departamento jurídico sempre acompanharam o processo. Não há aqui nada que não seja transparente e claro", afirma a diretora da UNICEF.

Não é caso único a organização ter de avaliar heranças que lhe são deixadas. "Há cláusulas legais que têm de ser cumpridas. Se houvesse ascendentes ou descendentes, não aceitaríamos", explicou Margarida Cordeiro. Neste caso, não havia nem pais nem filhos.

Perdido no aeroporto de Milão
Só existe a irmã de Fernando e esta discorda - não aceitou o testamento. Avançou com uma ação em tribunal em que argumentou que Fernando sofria de doença mental, passava por um "período paranoide que o incapacitava de exprimir livremente a sua vontade, tendo inclusive vários internamentos compulsivos com comportamentos delirantes e tresloucados, de desconfiança e isolamento". Por isso pediu a nulidade do testamento por incapacidade do testador. Recordou os quatro internamentos, três em Lisboa e outro em Itália, em Milão, no ano de 2014. Esteve vários dias no aeroporto de Malpenza até ser internado pelas autoridades italianas. "Refere que queria ir para Buenos Aires proveniente de Lisboa, doente sofre de psicose delirante e alucinatória", constava do relatório que foi entregue ao sobrinho que o foi buscar a Itália. A irmã juntou ainda um parecer médico de "autópsia psicológica", elaborado pelo psiquiatra Mário Simões.

 
Lê-se no parecer: "Temos pois a certeza da sua [referindo-se à esquizofrenia paranoide] instalação crónica, pelo menos desde o primeiro surto, identificado pelo primeiro internamento em 12 de outubro de 2001. E sempre progressivamente mais a partir do segundo mais grave desde o internamento em 13 de julho de 2012 até à data da morte, impõe também que se conclua pela incapacidade do autor do testamento para testar."

O Comité Português da UNICEF contestou, alegando que o falecido autor do testamento "sempre se apresentou lúcido e capaz, manifestando a sua vontade de forma livre e esclarecida e que o testamento foi feito na presença de dois médicos psiquiatras, que atestaram a sanidade mental do testador".

Em primeira instância a ação foi julgada "totalmente improcedente". Agora, em acórdão do dia 7 de junho, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão: o testamento é válido e a UNICEF deve ficar com os bens. A decisão aponta que era necessário provar que a herança foi deixada quando Fernando vivia um estado demencial. E considerou que isso não aconteceu, sustentando-se no facto de os dois psiquiatras terem atestado o testamento, vendo ali pessoas "com especiais conhecimentos para atestar que, naquele momento, o testador se encontrava lúcido e capaz".

Pessoa "lúcida e esclarecida"
No longo acórdão lê-se que "da descrição da intenção testamentária não retira este tribunal, o exercício de uma vontade, deturpada pela doença, por períodos de alucinação ou de psicose, que distorcessem a realidade, ou o exercício da vontade. O contacto do testador com estas instituições (independentemente de ser pessoa caridosa ou altruísta, certo que, não existindo herdeiros legitimários, poderia dispor dos seus bens como lhe apetecesse), o contacto com o notário e, acima de tudo, o cuidado posto em se fazer acompanhar por médicos da especialidade que atestassem a sua capacidade naquele ato (pois que ainda que solicitado pelo notário, decorreria sempre, conforme este relatou, de uma informação prévia do testador, de sofrer de algum tipo de afetação psíquica), prevendo e prevenindo eventuais reações face ao teor do testamento, são manifestações de vontade de pessoa não só inteligente, como lúcida e esclarecida".

 
Luís Gamito foi um dos psiquiatras que testemunhou no notário.


Para os juízes desembargadores, Cristina Neves, Manuel Rodrigues e Ana Paula Carvalho, a alegação de que "o testador sofria de perturbações psíquicas, reconhecidas estas, não basta por si só, como não basta a alegação do suicídio posterior deste, ou a sua (no mínimo original) descrição tumular, para se considerar viciada, inoperante a vontade manifestada. Podendo ser descritos como um ato provocatório, ofensivo da moral institucionalizada na nossa cultura cristã (ocidental), podendo o suicídio ser descrito como uma afronta à vida humana (e penalizado como crime ainda na Europa cristã do século XIX), não é no entanto passível de ser descrito como um ato de um louco, de alguém consistentemente afetado nas suas capacidades psíquicas, incapaz de querer e entender".


Em jeito de conclusão, os juízes, recuperando jurisprudência do Supremo, apontam: "A existência de incapacidade não é incompatível com a coexistência de intervalos lúcidos, que neste caso, aliás, consabidamente existiam." Por isso, o recurso foi declarado totalmente improcedente. O DN não conseguiu saber se a família tenciona recorrer mas os prazos decorrem até outubro pelo que antes não haverá trânsito em julgado e a UNICEF tem ainda de esperar para usufruir da herança.

www.dn.pt

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