Mandela e a igual
dignidade dos homens
Quando falamos de "santidade", no âmbito de uma tradição religiosa, temos a tendência para consagrar o sentido da palavra ao conjunto daqueles que reconhecidamente, pelas instâncias competentes, se dedicaram "exclusivamente à oração", tendo um comportamento de autenticidade da relação dela com a intervenção no mundo em que lhes aconteceu viver.
De facto, aquilo que reconhecidamente necessitamos hoje, perante a falta de governança do que chamamos globalismo, e do encontro inevitável de todas a etnias, culturas, crenças, e falta destas, é que tal virtude, no dizer do Dalai Lama, é mais necessária do que apenas a prática reconhecida pelas "religiões tradicionais". Para tentar manter o tema com uma dimensão que ultrapassa o âmbito da doutrina e da ação católica, começarei por recordar palavras do lembrado Dalai Lama, que me levaram a juntar os nomes de Mandela, do Mahatma Gandhi, e em nossos dias mais recentes, de Luther King, o último assassinado ao pregar o seu - I Have a dream, o penúltimo assassinado quando e porque pregava a união da igualdade entre hindus e muçulmanos na Grande Índia, e Mandela dando o exemplo de pregar e praticar a igual dignidade dos homens, com o perdão intimo de todas as amarguras que sofrera pela vigência do regime que se chamou apartheid na África do Sul.
Serão certamente inspiradoras de meditação estas palavras de Dalai Lama, que há anos tive a honra de apresentar no auditório da Reitoria da Universidade de Lisboa, e que retiro da entrevista que concedeu a Franz Alt, publicada com o título "Um Apelo ao Mundo" (20-20 Editora, 2018) e que são os seguintes: "O Mahatma Gandhi era um homem profundamente religioso, mas também tinha uma mente secular. Nas suas sessões diárias de oração liam-se e cantavam-se textos de todas as grandes religiões e fontes de saber. Gandhi era um grande amigo de Jesus e do pacifismo que revelou no Sermão da Montanha.
É o meu modelo porque incorporou essencialmente a tolerância religiosa. Esta tolerância possui raízes ancestrais na Índia. A Índia alberga hindus, muçulmanos, cristãos, sikhs, jainistas, budistas, zoroastrianos, agnósticos, e ateus, e vivem juntos pacificamente - com poucas exceções". É por isso que não são inoportunas, estas palavras do Francisco, Bispo de Roma, recolhidas por Paulo Neves da Silva (Papa Francisco, Frases e Reflexões, 20/20 Editora, Lisboa, 2017): "Não são as coisas exteriores que nos fazem santos ou não santos, mas é o coração que expressa as nossas intenções, as nossas escolhas, as atitudes exteriores são a consequência do que decidimos no coração, mas não o contrário... A fronteira entre o bem e o mal não passa fora de nós, mas sim, dentro de nós".
Não obstante tal doutrina ter herdado o legado da chamada Doutrina Ibérica da Paz, resultante do ensino das Universidades de Coimbra, de Évora, de Salamanca, o contexto das etnias e culturas diferentes produziu uma teoria de mitos raciais, que na expressão mais severa foi a escravatura, praticada por europeus, africanos, orientais, este ajudando a construir, sob a direção dos Brancos, o que são hoje os EUA, que se povoaram de emigrantes europeus depois de extinguirem os nativos em que avultava a grande Nação dos Iroqueses, e a escravatura que exigiu uma guerra civil para ser extinta, e mais tempo para terminar com a descriminação de que foi vitima o também santo Luther King. Tais mitos raciais, têm relevo nas memórias dos vivos pelo exercício brutal do nazismo, que tornou esdruxula a tradição antiga da própria Europa, mas sobretudo na África e, nesta, pelo regime do Apartheid que Mandela teve de enfrentar.
A superioridade que os brancos se atribuíam tem não apenas, neste caso, motivações económicas, mas é menos explicável que os atingidos pelos mitos de superioridade branca tenham em muitas regiões considerado que tal cor era preferível à sua.
Recentemente, Martin Jacques, "visiting fellow at the London School of Economics", dedicou parte das suas longas investigações à busca das razões pelas quais as tendências ocidentais da moda, do vestuário, da estética feminina, sejam facilmente adotadas pelas regiões que foram colonizadas pelos ocidentais, procurando aproximar a cor das peles diversas, das técnicas embelezadoras das mulheres brancas (Martin Jacques, Quando a China Mandar no Mundo, Circulo de Leitores, Lisboa, 2012).
Trata-se de um escritor que evidentemente não dá apoio a nenhum mito racial, mas este tema passou a ter interesse quando os europeus tendem para ser uma minoria nesta "terra casa comum dos homens" se a demografia continuar no sentido atual. É destes homens, aos quais atribuo santidade, a que também me parece existir nos lideres europeus que procuraram, depois de viver a guerra de 1939-1945, organizar a Europa e o Ocidente sob o sonho de "nunca mais". E foi esse sonho de "nunca mais" que marcou a intervenção de Mandela no mundo em que lhe aconteceu viver.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"30/07/18
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