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terça-feira, 6 de março de 2018

Recordar Gabriel García Márquez


Gabriel Garcia Márquez nasceu há noventa e um anos, a  6 de Março de 1927, em Aracataca, Colômbia.
Descobri a sua escrita era ainda jovem. A sedução que me provocou aquele mundo fantástico  dos seus textos foi  uma das maiores experiências que tive como leitora. Abriu-se um novo mundo que me fascinou  pela beleza e originalidade de uma prosa tão   poética  que chegava a obscurecer    alguma da poesia em verso.
Gabriel Garcia Márquez capturou-me . A ele presto homenagem , transcrevendo um magnífico discurso que fez em 2007, quando lhe foi prestada um grande tributo.
Gabriel García Márquez e Pablo Neruda na Normandia
Uma alma aberta para ser preenchida com mensagens em castelhano
Cartagena das Índias, Colômbia, 26 de Março de 2007
Por Gabriel García Márquez 
" Nem no mais delirante dos meus sonhos nos dias que escrevia Cem Anos de Solidão cheguei a imaginar que poderia  ver uma edição de um milhão de exemplares.  Pensar que um milhão de pessoas pudessem ler alguma coisa escrita na solidão de um quarto , com vinte e oito letras  do alfabeto e os dedos como único arsenal, parecia com toda a evidência uma loucura. Hoje, as Academias da Língua fazem-no como um gesto para com um romance que passou diante dos olhos de cinquenta  vezes um milhão de leitores, e para com um artesão ínsone como eu, que não se refaz da surpresa por tudo o que aconteceu.
Mas não se trata nem pode tratar-se de um reconhecimento a um escritor. Este milagre é a demonstração irrefutável de que há  uma quantidade  enorme de pessoas dispostas  a ler histórias  em língua castelhana, e portanto  um milhão de exemplares de Cem Anos de Solidão não são um milhão de homenagens ao escritor que hoje recebe ruborizado o primeiro livro desta tiragem descomunal. É a demonstração de que há milhões de leitores de textos em língua castelhana à espera deste alimento.
Na minha rotina de escritor nada mudou desde então. Nunca vi  nada diferente que os meus dois dedos indicadores a baterem um a um a bom ritmos as vinte e oito letras do alfabeto inalterado  que tive diante dos meus olhos durante  estes setenta e tal anos. Hoje coube-me levantar a cabeça para assistir a esta homenagem que agradeço e não posso fazer outra coisa  senão deter-me  a pensar o que foi que aconteceu. O que vejo é que o leitor inexistente da minha página em branco é hoje uma descomunal multidão faminta de leitura de textos em língua castelhana.
(...) O desafio é para todos os escritores, todos os poetas  , narradores e educadores  de nossa língua, para alimentar essa sede e multiplicar esta multidão, verdadeira razão  de ser do nosso ofício, e, claro, de nós mesmos. 
Nos meus trinta e oito anos e já com quatro livros publicados desde os vinte anos, sentei-me diante da máquina e escrevi : " Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento ,  o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde  remota  em que o pai o levara a conhecer o gelo." Não fazia a menor ideia  do significado nem da origem  dessa frase nem de onde me havia de conduzir. O que hoje  sei é que não deixei de escrever  nem um único dia durante dezoito meses , até terminar o livro.
(...) O  que poderia ser motivo para outro livro melhor era como Mercedes e eu sobrevivemos com os nossos dois filhos durante esse tempo em que não ganhei nenhum centavo de lado nenhum. Nem sequer sei como fez Mercedes para que não faltasse nem um dia comida na casa. Tínhamos resistido à tentação dos empréstimos com juros até fazermos  das tripas coração e empreendermos as nossas primeiras incursões ao Monte de Piedad.
Depois dos efémeros alívios com certas coisas miúdas, foi preciso apelar às joias  que Mercedes tinha recebido  dos seus familiares ao longo dos anos. O perito examinou-as com um rigor  de cirurgião, pesou e reviu com o seu olho mágico os diamantes dos brincos , as esmeraldas de um colar, os rubis dos anéis, e no final devolveu-no-los com uma longa verónica de novilheiro:" Tudo isto é puro vidro."
Nos momentos de maiores dificuldades  Mercedes fez as suas contas astrais  e disse ao seu paciente  senhorio, sem o mínimo tremor de voz:
- Podemos pagar-lhe tudo junto dentro de seis meses.
- Desculpe, minha senhora - respondeu-lhe o proprietário -, já percebeu que nessa altura será uma quantia enorme?
- Percebi - disse Mercedes, impassível - , mas nessa altura teremos tudo resolvido. Fique sossegado.
 Ao bom doutor, que era um alto funcionário do Estado,  e um dos homens mais elegantes e pacientes que tínhamos conhecido, tão-pouco tremeu a sua voz para responder:
- Muito bem, minha senhora, a sua palavra basta-me - e fez as suas contas mortais. - Espero-a no dia sete de Setembro.
1ª edição do romance
"Cem anos de Solião"
 Por fim, em princípios de Agosto de 1966, Mercedes e eu fomos à estação de correios da Cidade do México a fim de enviar para Buenos Aires a versão terminada de Cem Anos de Solidão , um pacote de 590 páginas escritas à máquina a dois espaços e em papel ordinário, e dirigidas  a Francisco Porrúa, director literário da Editorial Sudamericana.
O funcionário dos correios pôs o pacote na balança, fez os seus cálculos mentais e disse:
- São oitenta e dois pesos.
Mercedes contou as notas e as moedas soltas que lhe restavam na carteira e confrontou-se com a realidade. 
- Só temos cinquenta e três.
Abrimos o embrulho, dividimo-lo em duas partes iguais e mandámos uma para Buenos Aires sem sequer perguntar como íamos conseguir o dinheiro para mandar o resto. Só depois nos apercebemos de que não tínhamos mandado a primeira metade, mas sim a última.  Mas antes de conseguirmos o dinheiro para a mandar, Paco Porrúa, o nosso homem na Editorial Sudamericana, ansioso por ler a primeira parte, adiantou-nos o dinheiro para podermos mandá-la.
Foi assim que voltámos a nascer na nossa vida de hoje."
Gabriel García Márquez, in Eu não venho fazer um discurso", Publicações 
Dom Quixote, 2015, pp. 139-144

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