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domingo, 27 de dezembro de 2015

Perfil: Conheça Magda Donato, jornalista espanhola que se internou em um manicômio para contar a história do lugar




Trocando de identidade para chegar aonde queria, indo a restaurantes populares públicos como uma viúva com fome ou entrando na cadeia como modista violenta, Magda Donato fez jornalismo


Não se interessava por entrevistas nem visitas. Precisava de muito mais porque com ela o jornalismo de ir, ver e contar adquiria outros matizes, outras faces. Sua verdade só podia entrar por todos os sentidos ao mesmo tempo e, para isso, é preciso ir, mentir e permanecer, antes de contar.
Carmen Eva Nelken nasceu em 1898 no seio de uma família judia. De pai alemão e mãe francesa, cresceu ofuscada por sua irmã mais velha, Margarita Nelken, que se tornaria uma das primeiras deputadas espanholas. Para que ninguém relacionasse suas conquistas com o sobrenome, Carmen decidiu assinar como Magda Donato, o pseudônimo com que ainda é (des)conhecida.
Fotos: Reprodução/Yorokobu
Para que ninguém relacionasse suas conquistas com o sobrenome, Carmen  Eva Nelken, filha de uma deputada, decidiu assinar como Magda Donato Duas paixões regiam a vida de Magda Donato: o teatro e o jornalismo. Tudo o que fez ao longo da vida foi harmonizá-las. Trocando de identidade para chegar aonde queria, indo a restaurantes populares públicos como uma viúva com fome ou entrando na cadeia como modista violenta, conseguiu fazer jornalismo sem renunciar à interpretação.
Assim começou a escrever o que ela chamava de “reportagens vividas”, textos que, voluntariamente ou não, bebiam do trabalho de Nellie Bly, a jornalista que no final do século XIX seguiu o desafio do personagem imaginário de Jules Verne e percorreu o mundo em 72 dias, além de viver em um manicômio para escrever uma reportagem.
Não, o jornalismo gonzo não foi inventado nem por Günter Wallraff nem por Hunter S. Thompson. Embora isso não seja explicado na faculdade, o jornalismo de imersão nasceu dos pés e dos olhos de mulheres como Nellie Bly e Magda Donato, as primeiras a adotarem outras personalidades para escrever suas reportagens em primeira pessoa.
'El Principe Perro', relato de Magda publicado na imprensa espanhola
'El Principe Perro', relato de Magda publicado na imprensa espanhola
Além do mais, para Magda Donato, as qualidades das mulheres as predispunham ao bom jornalismo. Assim ela explicou em La Mujer y el Periodismo (A Mulher e o Jornalismo): “Quando o ambiente tiver se livrado por completo de sua estreiteza e mesquinharia nefastas, as mulheres poderão livremente consagrar-se ao jornalismo que somente elas podem fazer chegar a seu pleno desenvolvimento. Somente as mulheres têm bastante emoção para pôr no jornalismo as doses de humanitarismo altruísta do qual é capaz”.
Magda Donato queria mudar o mundo com seu trabalho, por isso se distanciou das amarras do jornalismo da época para enriquecer seus textos com recursos literários. Tanto ela como Nellie Bly rejuvenesceram o jornalismo, não só pela obsessão de se meterem em confusão e se disfarçarem para trabalhar, mas por um estilo muito peculiar que ambas compartilhavam e com o qual conseguiram fazer com que a pessoa que as lê hoje se pergunte se aquilo realmente pôde ter sido escrito há um século, e não ontem. O humor, a ironia, a simplicidade e a introdução de descrições e diálogos transformam a obra de ambas em reportagens atemporais que parecem mais típicas do Novo Jornalismo, movimento posterior.
Aproveitando seu conhecimento de vários idiomas (por suas origens ela também falava perfeitamente francês e alemão) e seus dotes interpretativos, Magda Donato conseguiu ser quem quis, e suas “reportagens vividas” foram aparecendo, com grande êxito, no jornal Ahora entre 1932 e 1936. Foram recompilados por Margherita Bernard para a editora Renacimiento com o título Reportajes.
As outras vidas de Magda Donato
Magda Donato necessitava de um médico que certificasse sua loucura porque teimou em contar a vida das internas de um sanatório psiquiátrico. Não lhe bastava olhar ou escutar o que lhe queriam dizer: tinha que viver com elas, ser mais uma. Não é a ideia mais inusitada, já que décadas antes Nellie Bly se fez internar em um manicômio com a mesma finalidade para escrever o livro Diez Días en un Manicomio. Ambos os textos se complementam: enquanto Bly destaca o tratamento vexatório que as pacientes recebem, Donato se concentra em suas companheiras, suas manias, seu dia-a-dia e seus anseios. Todas são retratadas com respeito e carinho na reportagem Un Mes entre las Locas.

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No manicômio, Donato chega a entender as internas: “Quem disse que perdem a razão? O que fazem é trocá-la por outra que lhes esconde, é verdade, as tristezas que existem, mas que lhes inventa, em troca, outras tão atrozes que a realidade talvez não soubesse criar”.
Uma mulher que caça ervilhas com uma forquilha que tira do cabelo, outra que regurgita por culpa do riso, e outra a quem o governo manda aviões para espioná-la até quando leva flores ao túmulo do falecido esposo são algumas de suas companheiras.
Se era difícil entrar em um manicômio dizendo a verdade (e um século atrás nada era mais fácil do que considerar uma mulher louca), previsível era o final: Magda se desfizera de sua carteira de jornalista para que ninguém pudesse descobrir sua identidade. Tentar convencer o médico de sua sanidade mental com base em argumentos tais como o de que não estava louca, que na realidade era jornalista e tinha ido ali para escrever, era algo que qualquer outra interna poderia ter contado, e ninguém a teria levado a sério.
Se há algo de que a jornalista não desdenhava, além do humor, era a lógica mais pura e a compreensão, em um mundo que para ela se apresentava mais simples do que para os médicos ou os desesperados que recorriam aos adivinhos.
Quando o diretor de Assistência Social lhe entregou os dados estatísticos relacionados com restaurantes e albergues aonde ia quem não tinha nada, propôs a ela que “desse uma voltinha” por lá. Donato foi taxativa: “Não, muito obrigada, não me interessa”. Claro que lhe interessava, mas algo tão superficial era insuficiente para uma mulher que necessitava mendigar para sentir a fome. Na realidade, já havia feito isso.

Magda e o Marido, Salvador Bartolozzi, fundaram o Teatro Pinocho em 1929
Magda e o Marido, Salvador Bartolozzi, fundaram o Teatro Pinocho em 1929
Antes daquela entrevista Donato havia passado uma semana comendo entre mendigos, com um nome falso gravado no cartão. Às vezes pouco importava o tempo de espera, conformava-se com o segundo e terceiro turno no refeitório. Do último a maioria fugia como da peste. E claro que tinham fome, mas Donato também entende: “Acho que fugir assim do último turno é uma questão de amor próprio. A pessoa pode ser pobre e não querer se contentar com as sobras dos demais, não é verdade?”. Quando preparava a reportagem En la Cola de los Hambrientos (Na fila dos Esfomeados), a jornalista se sentiu na selva, rodeada de animais, indefesa, inferior, entorpecida. Mas não perdeu o sentido do humor. Na fila só havia uma conversa possível: a comida. Uma garota afirma que no ano anterior deixou de ir ao refeitório porque encontrara uma batata rodeada de cabelos. Alguém lhe esclarece: “Agora já não há batatas, há vagens”. Magda Donato fica pensando: “Respiro tranquilizada, como se existissem menos probabilidades capilares nas vagens do que nas batatas”.
Magda Donato se fez passar por uma jovem francesa perfeitamente preparada para atender as chamadas no consultório de um suposto adivinho índio. Como mademoiselle Marie conseguiu o trabalho e descobriu que o adivinho, que a incentivava a rejeitar clientes para aparentar que estava sendo muito solicitado, nem sequer era índio, mas de Guadalajara.
Parece que gostou da experiência, porque também se infiltrou no consultório de outra adivinha. Quando Xantina “consegue” afastar a mulher do amado de sua cliente, vangloria-se de ter feito com que fiquem “juntos para sempre”. Ao que Donato faz uma ressalva: “Juntos para sempre? Isso acontecerá, sem dúvida, se na América não derem com outra Xantina, não?”
Com uma amiga, Magda Donato tramou uma falsa denúncia. Sua amiga teve de acusá-la de uma briga de rua, cuja multa Magda Donato se negou a pagar, para forçar sua ida para a prisão, onde passou fome e aprendeu como fazer uma cama de verdade.
A literatura infantil era sua outra paixão. Encontrou o par perfeito quando conheceu o desenhista Salvador Bartolozzi, no mesmo ano em que começou a colaborar com a imprensa. Ambos exploraram sua imaginação compartilhando suas vidas e trabalhando juntos: ela, escrevendo histórias, e ele, ilustrando-as. Conseguiram renovar a literatura infantil na Espanha. Em 1929, fundaram o Teatro Pinocho (Pinóquio), onde davam vida aos personagens de suas histórias.
Depois da Guerra Civil Espanhola, o casal se exilou na França. Chegaram a Paris quando irrompeu a Segunda Guerra Mundial e tiveram que recorrer a um segundo exílio, sem nem sequer se alojar na cidade. No México, Magda Donato alcançou um enorme sucesso como atriz de teatro e séries. Em 1960 viveu seu momento de glória ao interpretar o personagem da velha em As Cadeiras, de Ionesco, obra dirigida por Alejandro Jodorowsky e que ela havia traduzido do francês. Essa interpretação lhe valeu o prêmio de melhor atriz do Agrupamento de Críticos de Teatro.  Mas Salvador já não estava ali para celebrar com ela: havia morrido dez anos antes.
Concentrou-se no teatro e também escreveu algumas peças. Após sua morte (1966), no México passou a ser outorgado o Prêmio Magda Donato à melhor obra teatral, até 1973. Embora Avilés (Astúrias), Miguelturra (Ciudad Real) e Saragoça tenham nomeado ruas em sua homenagem, Magda Donato continua sendo uma grande desconhecida.
(*) Publicado em Yorokobu
Tradução: Maria Tereza Souza

 http://operamundi.uol.com.br



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