Losurdo: "A indústria da mentira, parte da máquina de guerra imperialista"
"A indústria da mentira, parte da máquina de guerra imperialista"
por Domenico Losurdo
"Se o Mal deve ser mostrado e marcado em todo o seu horror, o Bem deve aparecer em todo o seu esplendor. Em dezembro de 1992, fuzileiros navais dos EUA desembarcaram na praia de Mogadiscio. Para maior exatidão, desembarcaram duas vezes e a repetição da operação não se deveu a dificuldades militares ou logísticas imprevistas. Era preciso mostrar ao mundo que, mesmo antes de ser um corpo militar de elite, os fuzileiros eram uma organização beneficente e caridosa que trazia esperança e um sorriso ao povo somali devastado pela miséria e pela fome. A repetição do desembarque-espetáculo destinava-se a emendá-lo nos seus pormenores errados ou defeituosos.""Mogadíscio era a contrapartida de Timisoara. Há alguns anos de distância da representação do Mal (o comunismo que finalmente desmoronou) seguiu-se a representação do Bem (o império americano, que emergia do triunfo alcançado na Guerra Fria). São agora claros os elementos constitutivos da guerra-espetáculo e do seu êxito."
Na história da indústria da mentira, parte integrante do aparelho
industrial militar do imperialismo, 1989 é um ano de viragem. Nicolae
Ceausescu ainda está no poder na Roménia. Como derrubá-lo? Os meios de
comunicação ocidentais difundem de modo maciço junto à população romena
informação e imagens do "genocídio" cometido em Timisoara pela polícia
por indicação de Ceausescu.
1. Os cadáveres mutilados
O que acontecera na realidade? Beneficiando da análise de Debord sobre a
"sociedade do espetáculo", um ilustre filósofo italiano (Giorgio
Agamben) sintetizou de modo magistral a história de que aqui se trata:
"Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres sepultados ou alinhados sobre mesas das morgues foram desenterrados às pressas e torturados para simular frente às câmaras o genocídio que devia legitimar o novo regime. O que o mundo viu em direto como verdade real, no écran da televisão, era a não verdade absoluta. Embora a falsificação fosse óbvia, todavia era autenticada como verdadeira pelo sistema mundial dos media, porque estava claro que agora a verdade não era senão um momento do movimento necessário do falso. Assim, a verdade e a mentira tornaram-se indiscerníveis e o espetáculo legitimava-se unicamente mediante o espetáculo.
Timisoara é, neste sentido, a Auschwitz da sociedade do espetáculo: e como já foi dito que depois de Auschwitz é impossível escrever e pensar como antes, da mesma forma, depois de Timisoara não será mais possível ver um écran de televisão do mesmo modo" (Agamben, 1996, p. 67).
No ano de 1989 a transição da sociedade do espetáculo para o espetáculo
como técnica de guerra manifestou-se à escala planetária. Algumas
semanas antes do golpe de Estado, ou seja, da "revolução Cinecittà" na
Roménia (Fejtö 1994, p 263), a 17 de novembro de 1989, a "revolução de
veludo" triunfava em Praga agitando uma palavra de ordem de Gandhi:
"Amor e Verdade". Na realidade, um papel decisivo coube à divulgação da
notícia falsa de que um aluno fora "brutalmente assassinados" pela
polícia. Vinte anos mais tarde, revela satisfeito um "jornalista e líder
da dissidência, Jan Urban", protagonista da manipulação: a sua
"mentira" havia tido o mérito de suscitar a indignação em massa e o
colapso de um regime já periclitante (Bilefsky 2009).
Algo semelhante acontece na China: em 08 de Abril de 1989 Hu Yaobang,
secretário do PCC até há um par de anos, sofreu um enfarte durante uma
reunião da Comissão Política e morreu uma semana depois. Para a multidão
na Praça da Paz Celestial a sua morte está ligada ao duro conflito
político verificado no decorrer naquela reunião (Domenach, Richer, 1995,
p 550.), de qualquer modo ele se torna vítima do sistema que se tenta
derrubar. Em todos os três casos, a invenção e a denúncia de um crime
são chamados a suscitar a onda de indignação de que o movimento de
revolta tem necessidade. Se se consegue o êxito completo na
Checoslováquia e na Roménia (onde o regime socialista havia-se seguido
ao avanço do Exército Vermelho), esta estratégia falhou na República
Popular da China que brotou de uma grande revolução nacional e social. E
aqui é que tal fracasso se torna o ponto de partida de uma nova e mais
maciça guerra mediática, que é desencadeada por uma superpotência que
não tolera rivais ou potenciais rivais e que ainda está em pleno
desenvolvimento. Fica definido que o ponto da viragem histórica está em
primeiro lugar em Timisoara, "a Auschwitz da sociedade do espetáculo".
2. A "anunciar bebês" e o corvo marinho
Dois anos depois, em 1991, verificou-se a primeira Guerra do Golfo. Um
corajoso jornalista estadunidense explicou como se deu "a vitória do
Pentágono sobre o media", ou seja, a "derrota colossal dos media por
obra do governo dos Estados Unidos" (MacArthur 1992, pp. 208 e 22).
Em 1991, a situação não era fácil para o Pentágono (nem para a Casa
Branca). Tratava-se de convencer da necessidade da guerra um povo sobre o
qual ainda pesava a memória do Vietnã. E então? Espertezas várias
reduziram drasticamente a possibilidade de jornalistas falarem
diretamente com os soldados ou reportarem diretamente a partir da
frente. Na medida do possível, tudo deve ser filtrado: o fedor da morte e
sobretudo o sangue, o sofrimento e as lágrimas da população civil não
devem invadir as casas dos cidadãos dos EUA (e dos habitantes do mundo
inteiro) como no tempo de guerra Vietnã. Mas o problema central mais
difícil de resolver era outro: como demonizar o Iraque de Saddam
Hussein, que ainda há alguns anos era considerado digno aos olhos dos
EUA, agredindo o Irão que brotara da revolução islâmica e antiamericana
de 1979 e inclinado a fazer proselitismo no Oriente Médio. A demonização
teria sido muito mais eficaz se ao mesmo tempo a sua vítima fosse
angelical. Operação nada fácil, e não apenas pelo facto de no Kuwait ser
dura e impiedosa a repressão de todas as formas de oposição. Havia algo
pior. Para executar as tarefas mais humildes os imigrantes eram
sujeitos a uma "escravatura de fato" e uma escravatura de facto que
muitas vezes assumia formas sádicas: não despertou particular emoção
casos de "servos arremessados a partir do terraço, queimados ou cegados
ou espancados até a morte " (MacArthur 1992, pp. 44-45).
E ainda assim... Generosamente ou fabulosamente recompensada, uma
agência de publicidade encontra remédio para tudo. Essa denunciou o
facto de que os soldados iraquianos cortavam as "orelhas" dos
kuwaitianos que resistiam. Mas o golpe de teatro desta campanha era
outro: os invasores haviam irrompido num hospital, "removendo 312 bebés
das suas incubadoras e deixando-os morrer no chão frio do hospital de
Kuwait City" (MacArthur 1992, p 54). Proclamada repetidamente pelo
presidente Bush Sr., confirmado pelo Congresso, endossado pela imprensa
de referência, e até mesmo pela Amnistia Internacional, esta notícia tão
horripilante, mas mesmo assim circunstanciada para indicar com precisão
o número de mortes, não poderia deixar de provocar uma onda
avassaladora de indignação: Saddam Hussein era o novo Hitler, a guerra
contra ele era não só necessária como também urgente e aqueles que se
opusessem a ela ou fossem recalcitrantes deveriam ser considerados como
cúmplices mais ou menos conscientes do novo Hitler! A notícia era
obviamente uma invenção habilmente produzida e distribuída, mas foi para
isso que a agência de publicidade bem merecera o seu dinheiro.
A reconstrução desta história está contida em um capítulo do livro aqui
citado com um título adequado: "Publicitar bebês" (Selling Babies). Na
verdade, o "anunciado" não foram apenas os bebés. Logo no início das
operações militares foi difundida por todo o mundo a imagem de um corvo
marinho que se afogava no petróleo a jorrar de poços explodidos pelo
Iraque. Verdade ou manipulação? A causa da catástrofe ecológica era
Saddam? E há realmente corvos marinhos naquela região do globo e naquela
estação do ano? A onda de indignação, autêntica e habilmente
manipulada, varreu a última resistência racional.
3. A produção do falso, o terrorismo da indignação e o desencadeamento da guerra
Façamos um novo salto alguns anos em frente e chegamos assim à
dissolução, ou melhor, ao desmembramento da Jugoslávia. Contra a Sérvia,
que historicamente fora a protagonista do processo de unificação deste
país multiétnico, nos meses que antecederam o bombardeamento total
desencadeou-se uma onda de bombardeamentos multimídia. Em agosto de
1998, um jornalista americano e um alemão:
"Referem-se à existência de valas comuns contendo 500 cadáveres de albaneses, incluindo 430 crianças, perto de Orahovac, onde se combateu duramente. A notícia foi retomada por outros jornais ocidentais com grande destaque. Mas era tudo falso, como evidenciado por uma missão de observação da UE " (Morozzo Della Rocca 1999, p. 17).
Nem por isso a fábrica de falsificações entrava em crise. No início de
1999, os meios de comunicação ocidentais começaram a bombardear a
opinião pública internacional com fotografias de cadáveres empilhados no
fundo de um penhasco e, por vezes, decapitados e mutilados; as legendas
e artigos que acompanhavam tais imagens proclamavam que se tratava
civis albaneses inermes massacrados pelos sérvios. Só que:
"O massacre de Racak é horrendo, com mutilações e cabeças decepadas. É um cenário ideal para despertar a indignação da opinião pública internacional. Mas alguma coisa parece estranha nesta modalidade de carnificina. Os sérvios matam habitualmente sem fazer mutilações [...] Como ensina a guerra na Bósnia, as denúncias de brutalidade sobre corpos, sinais de tortura, decapitações, são uma arma da propaganda difundida [...] Talvez não fossem os sérvios, mas sim os guerrilheiros albaneses que mutilaram os corpos" (Morozzo Della Rocca 1999, p. 249).
Ou, talvez, os corpos das vítimas de um dos inumeráveis confrontos entre
grupos armados tivessem sido submetidos a um tratamento sucessivo, a
fim de fazer acreditar numa execução a frio e num desencadeamento de
fúria bestial, da qual era imediatamente acusado o país que a NATO se
preparava para bombardear (Saillot 2010, pp. 11-18).
A encenação de Racak foi apenas o culminar de uma campanha de
desinformação obstinada e cruel. Alguns anos antes, o bombardeamento do
mercado de Sarajevo havia permitido à NATO erguer-se como suprema
autoridade moral, que não se podia permitir deixar impune a "atrocidade"
sérvia. Hoje em dia pode-se ler, mesmo no Corriere della Sera, que "foi
uma bomba de paternidade muito duvidosa a fazer o massacre no mercado
de Sarajevo provocando a intervenção da NATO" (Venturini 2013). Com este
precedente anterior, Racak aparece hoje como uma espécie de reedição de
Timisoara, uma reedição prolongada por alguns anos. E no entanto,
também neste caso, houve êxito. O ilustre filósofo que em 1990 havia
denunciado "o Auschwitz da sociedade do espetáculo" verificado em
Timisoara, cinco anos depois alinhava-se ao coro dominante, trovejando
de forma maniqueísta contra "o deslizamento repentino da classe
dirigente ex-comunista no racismo mais extremo (como na Sérvia, com o
programa de limpeza étnica)" (Agamben 1995, pp. 134-35). Depois de haver
agudamente analisado a trágica indiscernibilidade da "verdade e
falsidade" na sociedade do espetáculo, ele acaba, involuntariamente, por
confirmá-la, aceitando de modo precipitado a versão (ou seja, a
propaganda de guerra) difundida no "sistema mundial dos media", que
anteriormente apontara como a fonte principal da manipulação. Depois de
ter denunciado a redução do "verdadeiro" para "momento do movimento
necessário do falso", feito pela sociedade do espetáculo, ele
limitava-se a conferir uma aparência de profundidade filosófica a esse
"verdadeiro" reduzido a "momento do movimento necessário do falso".
Por outro lado, um elemento da guerra contra a Jugoslávia, mais do que
em Timisoara, nos leva de volta à primeira Guerra do Golfo. É o papel
desempenhado pelas relações públicas:
"Milosevic é um homem tímido, não gosta de publicidade, não gosta de se mostrar ou fazer discursos em público. Parece que aos primeiros sinais de desagregação da Jugoslávia, a Ruder&Finn, empresa de relações públicas que trabalhara para o Kuwait, em 1991, apresentou-se a oferecer os seus serviços. Foi recusada. A Ruder&Finn foi ao invés contratada de imediato pela Croácia, pelos muçulmanos da Bósnia e pelos albaneses do Kosovo por 17 milhões de dólares por ano, a fim de proteger e promover a imagem dos três grupos. E ela fez um óptimo trabalho!
James Harf, diretor da Ruder&Finn Global Public Affairs , afirmou numa entrevista [...]:
"Fomos capazes de fazer coincidir na opinião pública sérvio e nazista [...] Nós somos profissionais. Tínhamos um trabalho a fazer e fizemos. Não somos pagos para fazer moral" (Toschi Marazzani Visconti 1999, p. 31).
Chegamos agora à segunda Guerra do Golfo: nos primeiros dias de
fevereiro de 2003, o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell,
mostrava à plateia do Conselho de Segurança da ONU as imagens de
laboratórios móveis para a produção de armas químicas e biológicas que o
Iraque dispunha. Algum tempo depois o primeiro-ministro britânico, Tony
Blair, redobrava a dose: não só Saddam tinha essas armas como já
havia feito planos para usá-las e era capaz de ativá-las "em 45
minutos." E mais uma vez o espetáculo, nada mais que o prelúdio para a
guerra, constituía o primeiro ato de guerra, pondo em guarda contra um
inimigo de que o género humano se devia absolutamente desembaraçar.
Mas o arsenal das armas da mentira executadas ou prontas para o uso foi
muito além disso. A fim de "desacreditar o líder iraquiano aos olhos do
seu próprio povo", a CIA propunha-se a "divulgar em Bagdad, um filme
revelando que Saddam era gay. O vídeo devia mostrar o ditador iraquiano
tendo relações sexuais com um garoto. "Devia parecer feito a partir de
uma câmara oculta, como se fosse uma gravação clandestina". A ser
estudada estava também "a possibilidade de interromper a transmissão da
televisão iraquiana com uma pretensa edição extraordinária do telejornal
contendo o anúncio de que Saddam havia renunciado e que todo o poder
fora retirado de seu filho Uday, temido e odiado" (Franceschini 2010).
Se o Mal deve ser mostrado e marcado em todo o seu horror, o Bem deve
aparecer em todo o seu esplendor. Em dezembro de 1992, fuzileiros navais
dos EUA desembarcaram na praia de Mogadiscio. Para maior exatidão,
desembarcaram duas vezes e a repetição da operação não se deveu a
dificuldades militares ou logísticas imprevistas. Era preciso mostrar ao
mundo que, mesmo antes de ser um corpo militar de elite, os fuzileiros
eram uma organização beneficente e caridosa que trazia esperança e um
sorriso ao povo somali devastado pela miséria e pela fome. A repetição
do desembarque-espetáculo destinava-se a emendá-lo nos seus pormenores
errados ou defeituosos. Um jornalista e testemunha explicou:
"Tudo o que está a acontecer na Somália e que se verá nas próximas semanas é um show militar-diplomático [...] Uma nova época na história da política e da guerra começou realmente, na noite bizarra de Mogadíscio [...] A "Operação Esperança" foi a primeira operação militar não apenas filmada ao vivo pelas câmaras, mas pensada, construída e organizada como um show de televisão" (Zucconi 1992).
Mogadíscio era a contrapartida de Timisoara. Há alguns anos de distância
da representação do Mal (o comunismo que finalmente desmoronou)
seguiu-se a representação do Bem (o império americano, que emergia do
triunfo alcançado na Guerra Fria). São agora claros os elementos
constitutivos da guerra-espetáculo e do seu êxito.
Domenico Losurdo
Fonte: Nova Cultura
Mafarrico Vermelho
Sem comentários:
Enviar um comentário