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segunda-feira, 28 de novembro de 2011


A Tentativa de Cobrir Davi: da Piazza della Signoria à porta da minha geladeira

David M. Gunn

"Exausta, como a Madona da Sistina em seu quarto de dormir"
Theodor Adorno

I. HISTÓRIA: LUGAR DE ENCONTRO


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Há quase 500 anos, no dia 25 de janeiro de 1504, discutia-se em Florença se a estátua de Davi, de Miguel Ângelo, já quase concluída, deveria ser localizada em algum lugar especial e permanente. Nesse debate participaram cerca de trinta pessoas pertencentes à classe política e artística, notando-se entre elas Sandro Botticelli, Piero di Cosimo, Filippino Lippi e Leonardo da Vinci. As atas desse encontro foram guardadas.
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Tudo indica que a consulta se deu em recinto próximo ao lugar onde estava a obra posto que "reflete observação direta e estudo da escultura antes do início da reunião" (Levine, 31 n. 1; Milanesi, 620). É provável que esse lugar tenha sido a Loggia dei Signoria (mais tarde chamada dei Lanzi), embora na entrada ou dentro do Palazzo Vecchio , residência da Signoria, como era chamado o conselho dos governadores da cidade, também interessado no debate. Tanto a Loggia como o Palazzo localizam-se na Piazza della Signoria. Na ocasião, a estátua foi posta no portal do Palazzo, onde já estivera a Judith de Donatello. Aí ela permaneceu até a metade do século dezenove quando, em 1873, foi transferida para o interior da Galleria dell'Accademia, onde está até hoje.
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O sentido tem muito a ver com a função do contexto, isto é, do espaço e do tempo bem como da subjetividade (sentido de quem?). O debate do qual falamos mostra que a busca do melhor local para a estátua envolvia, pelo menos para certas pessoas, a crença de que ela tinha sentido e que sua localização precisava estar de acordo com ele. No início daquele encontro, Francesco Monciatto disse: "Penso que tudo o que se faz tem propósito específico e assim acredito porque {a estátua} foi esculpida para ser posta entre os pilares ou contrafortes externos da igreja (isto é, do Duomo).
Não sei por que razão ela não foi para lá, pois entendo que ela serviria para ornamentar a igreja e o lugar das reuniões dos cônsules (da Associação das Roupas de Lã). Mas o lugar foi mudado."
Por que teriam sido mudados os planos? Randolph Parks responde: "assim que a qualidade do Davi tornou-se extraordinariamente visível, a Signoria decidiu colocá-la no nível da rua para que todos pudessem apreciar sua grandeza..." (Parks, 569 n. 41).
Tal explicação é tão boa como qualquer outra, especialmente em retrospecto. Por outro lado, a noção de "apreciar a sua grandeza" provoca outra linha de pensamento.
Ao olhar para a história da arte, vindo de outra área do conhecimento, provocou-me o fato de que no debate sobre a localização da estátua (entre Randolph Parks e Saul Levine) não se houvesse mencionado a possibilidade de que em 1504, em Florença, tal gigantesca escultura de um homem nu com os genitais à mostra pudesse ter sido considerada pelo menos imprópria para ornamentar a catedral. Nem Martha Fader satisfez minha curiosidade ao sugerir que "a ênfase pormenorizada de Miguel Ângelo na genitália seria consistente com as conotações proféticas inerentes ao tema da escultura" (Fader, 221).
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Margaret Walters observa, a respeito da redescoberta da nudez clássica, em geral:
O nu era apreciado apenas por pequena elite, conscientemente classista e avant-garde cujas idéias difundiram-se devagar enfrentando certa oposição. O gosto público a respeito da nudez - e, na verdade, em face do cultivo da antiguidade - continuava conservador, oscilando entre incompreensão e hostilidade aberta. Por volta de 1490, o ataque furioso de Savonarola ao novo paganismo e à nudez, seu símbolo, provocou enorme reação em Florença, sede do novo humanismo (Walters, 99).
Não há dúvida de que Monciatto não estava preocupado com a nudez e pensava que o lugar da estátua era mesmo na catedral (como, aliás, também pensava Botticelli). Por outro lado, os coordenadores das obras da catedral (chamadas de Opera Del Duomo), também se mostravam reservados sobre as propostas da mudança do local da escultura. Monciatto afirma não conhecer as razões para a mudança dos planos - coisa possível, muito embora talvez estivesse lançando astuciosamente a isca para tentar chegar às razões verdadeiras das propostas. Mas, se essa tivesse sido sua intenção, nada conseguiu. É impressionante que ninguém se tenha animado a dar respostas a suas perguntas implícitas. Na verdade, ninguém durante esse debate falou diretamente sobre o "problema" da estátua que a tornava inadequada para a catedral (ou mais adequada em outro lugar). Parece que todos estavam, por meio de consenso silencioso, evitando o assunto. Por que não quiseram discutir a questão abertamente? Poderia se dizer, entre outras coisas, se o problema fosse de fato a genitália, que a situação era embaraçosa. Mas no mundo do novo humanismo, do qual se orgulhavam os sofisticados florentinos, é provável que as pessoas encarregadas do cuidado da catedral não desejassem cair no ridículo de admitir que a genitália de um homem era a pedra de tropeço para mostrar ao público tão notável obra de arte. Poderia se supor que a classe política mais alta a que pertenciam os encarregados de achar novo local para a escultura não quisesse embaraçar os diretores. Nem seria surpreendente imaginar que a comissão, da qual participavam inúmeros artistas dependentes de patrocinadores, fosse suficientemente polida para não insistir na busca de razões para a mudança.
Contudo, a discussão poderia se desenvolver como evidência indireta de que alguns participantes tinham consciência do "problema" do gigante nu, mas transferiram o "problema" para a questão da exposição ao ar livre argumentando que o mármore era frágil e sujeito à deterioração. Quero sugerir, no entanto, que o nome do jogo era de fato "a tentativa de cobrir Davi" e que as atas do aludido encontro revelam essa preocupação.
"Eu pensava", diz Giuliano da Sangallo no início dos debates, "no canto da igreja (do Duomo)... de onde seria vista pelos transeuntes. Mas considerando que a escultura é coisa pública (cosa pubblica), e que o mármore é imperfeito, tornando-se frágil e mole ao ser exposto ao tempo { ou ao permanecer ao ar livre (all'aria)"(Klein and Zerner)}, parece-me que não sobreviveria aí permanentemente." Assim, propõe - e Leonardo da Vinci lhe apoiaria mais tarde - que ela fosse posta debaixo da Loggia dei Signori, de preferência num lugar protegido perto da parede do fundo "dentro de um nicho como se fosse uma capela." Pois, acentua ele, "ela deve ser coberta {vuole stare coperta}".
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Levine comenta que a proposta de Giuliano para o nicho da Loggia
desenvolve sua idéia inicial de que ela ficasse perto do Duomo. Nesse nicho, os aspectos bíblicos e cristãos da iconografia de Davi seriam acentuados e os aspectos políticos contemporâneos e controvertidos da obra seriam eliminados... Nesse lugar protegido, ela ficaria quase sepultada em posição significantemente distante da vista do público e submersa nas profundas sombras da Loggia... Ao permanecer nesse tabernáculo, o Davi acabaria inócuo (Levine, 38-39).
A leitura de Levine é política, enquanto pró-republicano e anti-Medici (salientando o intenso olhar da esquerda). Achava que Giuliano simpatizava com os Médici, sem o confessar. Mas, se Giuliano queria resolver adequadamente a nudez problemática da estátua, então os comentários de Levine sobre os efeitos neutralizadores da Logia também se aplicam. Em outras palavras, Giuliano sugere que se a figura de Davi não pudesse permanecer em lugar de destaque na igreja, fosse posta num outro lugar adequadamente "coberta".
O ourives Andréa, chamado de Il Riccio, também insistia num lugar que a cobrisse, embora houvesse certa ambigüidade se apoiava a Loggia (coisa mais provável por causa do contexto de sua fala) ou o pátio interior do Palazzo Vecchio (como pensa Levine), seguindo a sugestão de Messer Francesco, primeiro oficial da Signoria, que teria aberto esse debate. Diz Riccio,
Aí ela estaria bem coberta (coperta), seria melhor contemplada e mais cuidadosamente protegida contra atos capazes de lhe causar danos (que a estragariam). Seria melhor deixa-la em lugar fechado (al coperto) para ser aí visitada; esse tipo de escultura não deveria ir ao encontro das pessoas - ela não deveria olhar para nós (Levine, 40-41).
Embora a linguagem do ourives seja ambígua, Levine sugere que Riccio estava mais preocupado com avarias (guasta) praticadas por vândalos do que com o efeito do tempo (Levine, 42 n. 39). No Palazzo a estátua ocuparia lugar mais apropriado uma vez que seria vista pelos membros da Signoria e por funcionários públicos. Se Riccio estivesse se referindo à Loggia, interpretação semelhante seria também cabível. Estaria concordando com Giuliano sobre a questão fundamental: a estátua deveria permanecer isolada do espaço público aberto (ver também Seymour, 59, que achava que a Loggia oferecia "certo isolamento").
Levine interpreta em termos políticos a preocupação com danos premeditados. Novamente, contudo, como no caso de Giuliano da Sangallo, imagino que Riccio (também?) tinha outra coisa em mente: estaria preocupado com a decência pública. Essa "coisa pública" não deveria ser assim tão pública! Vamos deixar que apenas as pessoas certas vejam-na; e que não seja exposta aos olhos do público.
Por outro lado, James Beck vê no preâmbulo da ata que o próprio Miguel Ângelo mostrava certa preocupação com possíveis ataques à escultura:
... os oficiais do Duomo, vendo que a estátua... estava quase pronta, e desejosos de localiza-la em lugar adequado e cômodo, seguro e sólido (locum solidum et resolidatum), como pedira Miguel Ângelo, o mestre do referido gigante, bem como os diretores da Associação da Lã, dispostos a realizar tais desejos, decidiram convocar uma reunião... (Beck, 123-4).
Beck acrescenta que "claramente, ao concluir seu trabalho, Miguel Ângelo pedia garantias de que o local destinado à estátua estivesse à prova de vandalismos..." O argumento de Beck depende da tradução que faz de locum solidum et resolidatum, como "seguro e sólido" (cf. "confiável e sólido", Klein e Serner; "firme e sólido", Levine; "sólido e estruturalmente confiável", Seymour). Parece também alinhar "adequado" com "seguro", termos de espaço social, e resolidatum por "sólido" enquanto termo de espaço material. Apesar de dificilmente corresponder com o que se queria dizer, acredito que está mais de acordo com o tom e a orientação da consulta sugerindo, enfim, que o secretário que escreveu essas palavras estivesse pensando bem mais do que em meras fundações.
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Giovanni Cellini, tocador de pífano (oficial do governo, segundo Beck, 130), afasta-se da sugestão de Giuliano por acreditar que a estátua devesse ser vista inteiramente, de todos os ângulos, "mas não podia ser vista assim". Em outras palavras, posta contra o fundo da Loggia, não seria plenamente apreciada; em vez disso, tinha que estar em espaço aberto (all'aria). . Por outro lado, tal exigência tinha seus problemas. "De um lado", acrescenta, expressando abertamente o que me pareceu estar presente nas preocupações de Giiuliano e Riccio, "algum infeliz poderia ataca-la com uma barra de ferro."
Propõe, portanto um meio termo com a vantagem de estar de acordo com a sugestão do primeiro mensageiro (e também de Riccio, segundo Levine), a saber, que a estátua ocupasse o pátio interno do Palazzo. Aí, em relativa segurança, a estátua poderia ser contemplada "em sua plenitude" pelas pessoas (distintas e cultas) que freqüentavam o Palazzo. "A tentativa de cobrir Davi", para Giovanni, queria dizer, realmente, "confinar Davi".
O argumento de Levine para se entender a oposição à estátua sob motivação política ecoa no comentário de Beck à fala de Giovanni:
Giovanni... demonstrou curiosa suspeita. Se a estátua fosse localizada ao ar livre, pessoas mal-intencionadas poderiam lhe causar danos. Isto é, por razões inexplicadas, a figura de Davi poderia ser alvo de vandalismo (... tal possibilidade reforça a suspeita de que havia certa aura política ao redor da estátua capaz de torna-la ofensiva a algumas pessoas) (Beck, 130).
Como já assinalei, Giovanni, contudo, não introduz sua suspeita acerca dos vândalos com o intuito de prejudicar a estátua. Essa suspeita existia desde o começo, muito embora só se tornasse explícita sem qualquer ambigüidade no discurso de Giovanni - e mesmo assim, como observa Beck, nada se explica. Tal possível hostilidade poderia resultar de motivos políticos mas, igualmente, de preocupações com a decência pública. Em qualquer dos casos, entende-se facilmente porque, num debate de intensa civilidade, ninguém ousasse nomear o problema fundamental.
Depois de diversas mudanças de atitude da parte do governo, a estátua foi instalada na Piazza, à entrada do Palazzo Vecchio. Parecia, em face disso, que os "encobertadores" e os "confinadores" da obra perdiam para os que desejavam expor a escultura "inteiramente" ao ar livre.
Por outro lado, a estátua assim exposta aos olhos do público, foi realmente atacada na primeira noite de sua exibição, precisamente a 14 de maio de 1504. O Diário de Luca Landucci relata que "durante a noite algumas pedras foram jogadas no colosso com a finalidade de lhe causar avarias..."(Klein e Seerner, 44). Levine, concordando com Charles de Tolnay entre outros, acredita que o apedrejamento "foi possivelmente" organizado pelos partidários da família Médici (1974:34 n. 13; cf. de Tolnay, 10; McHam, 184 n. 50). Margareth Walter afirma que o ataque talvez tenha sido causado por essa gente, "mas mais provavelmente por pessoas chocadas pela nudez de Davi"(99); "provavelmente movidas pelo sentimento de ofensa moral de cidadãos decentes", segundo Mônica Bohm-Duchen (21; cf. Parks, 565 n. 24).
Talvez, com muito mais propriedade, sobressaia a questão esquecida mas reavivada por Frederick Hartt:
Para os defensores do exagerado recato da Segunda República, não apenas os genitais deveriam ser ocultos dos olhos inocentes dos florentinos, mas também, como dizia Vasari, "as divinas nádegas" de Davi; a estátua não deveria ser exposta sem que essas partes fossem cobertas. Segundo documento publicado por De Nicola em 1517 e logo esquecido, encomendou-se um fio de metal com vinte e oito folhas de cobre, no dia 31 de outubro. Segundo o texto de Pietro Aretino, em que denunciava as indecências do Juízo Final, que todos citam mas ninguém lê, essa cobertura permaneceu na estátua até 1545. (Hartt 1986; 106-107 e 115 n. 55-56, citando Paolo Barocchi in Poggi, vol. 4, 219 n. 1).
Assim Hartt descreve o intervalo entre a jornada da estátua do ateliê do Duomo até a Piazza della Signoria, de 14 a 18 de maio, e a "descoberta" da estátua no dia 8 de julho, segundo o Diário de Landucci. Mas foi providenciado certo tipo de cinturão para cobrir decentemente os ofensivos genitais da gigantesca estátua. Tudo indicava que agora os "encobertadores" ganhavam a causa.
Recordo-me das palavras de Leonardo da Vinci, no debate, singularmente esquecidas pelos críticos: "Concordo que ela permaneça na Loggia, onde Giuliano queria... ; com ornamentos apropriados (chon ornamento decente) de modo a não interferir (in modo no guasti) nas cerimônias do Estado" (Klein e Zerner). Ou, como traduz Seymour: "... com decência e decoro, de tal maneira que não atrapalhe as cerimônias dos oficiais."
Naturalmente, a estátua significava para Miguel Ângelo algo diferente do que pensavam os oficiais encarregados de sua localização. Não podiam aceita-la como era nem deixa-la ao ar livre (all'aria) . Entre seus inúmeros significados, pelo menos no espaço público, sobressaiam as dimensões sexuais que precisavam ser cobertas. A estátua teve que ser censurada. Qualquer interpretação de seu "sentido" que ignore o debate de seu "problema" e da subseqüente censura não nos ajuda a entender seu significado no seu espaço "vivido" agora.

II. LEITURAS INTERTEXTUAIS: LONDRES, NOVA YORK, SPRINGFIELD, WASHINGTON E ALÉM


(1) Londres: a folha de figueira da rainha Vitória

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A rainha Vitória recebeu do Grão Duque da Toscana, em 1857, a reprodução em gesso, da estátua de Davi, medindo 18 pés de altura. A rainha passou o presente para o Museu de South Kensington que se chama atualmente Victoria and Albert Museum, em Londres.
Conta-se que por ocasião do primeiro encontro da rainha com a estátua de Davi, no Museu, ela teria ficado tão chocada em face da nudez da figura que encomendou com urgência uma folha de figueira de tamanho suficiente para cobrir a genitália. Essa folha era guardada para ser usada durante visitas da realeza e colocada na estátua pendurada em dois ganchos estrategicamente confeccionados para esse fim. (http://www.vam.ac.uk/exploring/shortstories/fig_leaf).
Essa folha de figueira, moldada em gesso, acha-se numa caixa atrás do pedestal da estátua, embora entre 1997 e 1999 ela tenha sido exibida nos Estados Unidos, atraindo muita atenção. Curiosamente, essa peça, foi mostrada numa exposição sobre o tema " Ensino por meio de exemplo", devotada à "discussão da missão da educação e do ensino do desenho por meio de objetos empregados como exemplos" (http://www.boston.com/mfa/london/pressrel.html)http://www.boston.com/mfa/london/pressrel.shtml. Confesso minha perplexidade, embora um dos diretores do museu americano tenha observado que "a folha de figueira demonstrava certamente o decoro do período" (http://www.neh.fed.us/news/humanities/1997-07/design.html). Minha pergunta é a seguinte: de que época e espaço estamos falando? Trata-se da Inglaterra vitoriana ou da Florença do renascimento? Também pergunto, da decência de quem?

(2) Nova York e Evanston: a folha de parreira de Cynthia Pearl
Em 1954 uma casa publicadora muito conhecida lançou o livro de Cynthia Pearl Maus, O Antigo Testamento e as belas artes: antologia de quadros, poesia, música e histórias cobrindo o Antigo Testamento. Naturalmente, a estátua de Davi de Miguel Ângelo aparece coberta nessa obra.

(3) Springfield: Davi sem calças

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O lugar é Florença por volta de 1990. A notícia que corre é a seguinte: O Davi de Miguel Ângelo vai fazer um tour pelos Estados Unidos, de costa à costa. Bem... para ser preciso, Nova York, Springfield e, se houver tempo, Chicago, Boston e Los Angeles. Eis o que se passa em Springfield, onde Marge encarregada de uma cruzada contra a violência na televisão procura suas amigas, Maude e Helen, para novo protesto. Desta vez contra uma abominação.
Marge - Mm, mas é o Davi de Miguel Ângelo. É uma obra prima.

Helen - (ofegante) É uma sujeira! Essa estátua mostra graficamente partes do corpo humano que, muito embora úteis, são más.

Marge - Mas eu gosto da estátua.

Helen - (de novo ofegante) Eu disse para vocês, meninas, que Marge é tolerante para com a completa nudez frontal! Ora, vamos...

Enquanto o protesto aumenta, Kent Brockman aparece na tela da televisão:
Kent Brockmann - Trata-se de uma obra prima ou apenas de um cara sem calças? Este é o assunto desta noite no programa Smartline...

Marge desiste e resolve ir ao museu para ver Davi com Homero:

Homero: Ai está... O "Dave" do Miguel Ângelo...

De sua parte, Marge preferia que as crianças estivessem também aí para apreciar essa obra de arte em vez de perder tempo na frente da televisão com os desenhos animados do gato e do rato, entre outros. Homero é mais otimista:
Homero: Não vai demorar para que todos os meninos e meninas da escola elementar de Springlield estejam aqui para ver essa coisa.

Marge: Realmente? Por quê?

Homero: Eles estão fazendo força para traze-los! (ele ri)

(Trechos de Swazwelder, Itchy and Scratchy and Marge)

(4) Washington, DC: "Com decência e decoro"

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Os que acompanham as notícias de Washington, provavelmente tomaram conhecimento da decisão de cobrir o Espírito de Justiça do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, ou melhor, de Minnie Lou como era ela chamada afetivamente pelos moradores de Washington. Trata-se de uma estátua de alumínio medindo doze e meio pés de altura, dominando o Grande Hall desde 1936. Minnie Lou agora está oculta por grande cortina azul que tapa seus braços estendidos, sua toga flutuante e os seios expostos.
A confusão foi criada precisamente por causa desse busto à mostra. Seu companheiro chama-se Majestade da Lei. É uma estátua masculina, com pouca roupa (na verdade, apenas uma sunga cobre as partes cruciais). Essa estátua também está escondida detrás da cortina, muito embora tenha sido Minnie Lou a causadora de tudo isso. Parece que ela estava localizada de maneira a aparecer no fundo, acima da cabeça do advogado geral John Ashcroft, nas fotografias que o mostravam falando à imprensa. Ashcroft não gostou muito disso... e um membro de seu gabinete mandou então fazer as cortinas (Cathy Frisinger, Fort Worth Star-Telegram, 6 de fevereiro de 2002).
Frisinger observa sabiamente, além disso, que existem precedentes históricos para essas tentativas de cobrir obras de arte, relembrando as providências papais para cobrir "as partes ofensivas do corpo" nos afrescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina: " Depois da morte do artista, panos foram colocados nessas cenas", diz ela, embora pergunte se não haveria maneiras menos dispendiosas para essa tarefa, do que os 7.900 dólares gastos em cortinas no caso dos encobrimentos das partes do corpo de Minnie Lou que ofendiam Aschcroft. No espírito de decência e decoro de Ashcroft, o ilustrador do Star-Telegram, Jeremy Cannon, propôs o uso de "cortinas azuis para cobrir algumas de nossas famosas estátuas", acrescentando a necessidade de cobrir também os flancos do Davi de Miguel Ângelo.

(5) E além: mas existe outro problema com o problema
Rejeição da estátua: A cidade de Jerusalém recusou o presente de uma réplica da estátua de Davi de Miguel Ângelo porque a figura nua poderia ofender os judeus e árabes ortodoxos de Israel. O jornal Yediot Aharonot noticiou que a oferta de Florença, Itália, onde a obra original está localizada, pretendia celebrar os 3.000 anos da história de Jerusalém. Em lugar dessa escultura, a cidade de Florença resolveu doar uma réplica de bronze da estátua de Davi, do artista Andréa Del Verocchio, do século 15. Esse Davi está vestido (Atlanta Constitution, July 22, 1995).
Note-se que o Davi de Miguel Ângelo não está, naturalmente, circuncidado (sobre isso consulte Steinberg, 165-7), o que não deixa de ser irônico. Davi é o gigante. Golias foi reduzido a nada. E esse gigante não foi circuncidado. Como o próprio Davi tão eloqüentemente declarou: "Quem é esse incircuncidado filisteu para desafiar os exércitos do Deus vivo?" Assim, depois de tudo, Davi não tem lugar em Jerusalém. O significado é, pois, questão espacial.

III. MAIS HISTÓRIA: LOCALIZAÇÃO SOCIAL E FLORENÇA RENASCENTISTA

Retornemos à "história". Se quisermos contemplar algumas das dimensões da nudez pública de Davi na Florença de 1504 - a folha de figueira, relembremos, tinha dezoito polegadas - haveria contextos sociais e históricos mais imediatos para se considerar.

(1) Tradição artística: Davi na Idade Média

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Podemos perguntar, inicialmente, de que maneira a figura de Davi era usualmente mostrada na tradição artística herdada por Miguel Ângelo. O sentido é também questão de diferença. Em resumo, o Davi medieval aparece de quatro maneiras: salmista ou poeta-músico inspirado, penitente depois do caso com Betsabá, o jovem que mata Golias com seu estilingue e o que decapita Golias.
Não é que nunca tenha aparecido nu, porque numa iluminura do salmo 69 (Salvum me, colagem) ele aparece despido. Mas pelo que sei, ele sempre está vestido ao fazer música, ao se mostrar penitente, ao jogar pedras no gigante e ao decapita-lo. Nos primeiros anos do renascimento italiano vemos imagens semelhantes, como, por exemplo, no conhecido quadro de Andréa Del Castagno, que combina o estilingue com a espada. Davi está vestido.

(2) O Davi de Donatello: vitória e derrota homoerótica

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Foi Donatello, pela metade do século 15 (a data não é certa) que mudou tudo isso. Sua primeira escultura de Davi, feita de mármore, estava vestida como, aliás, esperava-se. Mas a estátua de bronze, criada depois, estava nua (mais ou menos). O corpo nu de um rapaz adolescente ressalta entre o chapéu e as botas, bastante erótico (e até mesmo homoerótico).
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Com sua mão direita segura o cabo de afiada espada, na direita, uma pedra e sua bota esquerda pisa a cabeça decepada de Golias. Pedaços do capacete do gigante escorregam do lado interno da coxa de Davi. O relevo da parte do capacete que protege o rosto representa o triunfo do Amor (cf. Schneider 1973; 1976; 1996:186-94). Miguel Ângelo, artista clássico e poeta, certamente reconheceu a cena. Seria essa figura Afrodite, a quem Eros servia, ou, talvez, o próprio Davi, Eros transformado em ser humano?
Seja qual for o caso, a ironia é notável: Golias (que para alguns retratava o próprio Donatello) carrega em sua cabeça os símbolos de sua queda. O triunfo do rapaz erótico era a morte do homem. Amor vincit...
Nos dias de Miguel Ângelo, o bronze de Donatello localizava-se no interior do pátio do Palazzo Vecchio. O Mensageiro oficial propôs em 1504 que o Davi de Miguel Ângelo substituísse o de Donatello. Argumentava-se que uma das pernas da estátua de bronze era de certa forma "ridícula" ou "estranha" (schiocha).
O Davi de Miguel Ângelo fora, então, concebido e moldado a partir da presença dominante do outro do século precedente: o jovem homoerótico de Donatello.

(3) Homossexualidade em Florença: espaço de Miguel Ângelo
No período final da Idade Média e durante a Renascença, a cidade de Florença tinha fama de sodomita, termo que em geral denotava atividade sexual entre homens. Em recente estudo, Forbiden Friendships: Homosexuality and Male Culture in Renaissance Florence (Amizades proibidas: homossexualismo e cultura masculina na Florença renascentista), Michael Rocke observa:
A fama sexual dos homens de Florença era comentada pelos cronistas locais e estrangeiros, condenada pelos pregadores, deploradas pelos cidadãos conservadores, desprezada - e às vezes admirada - por escritores e poetas. Suas preferências eróticas eram conhecidas até mesmo além dos Alpes de tal maneira que na língua alemã da época "sodomizar" era traduzido por florenzen e "sodomita", por Florenzer (Rocke, 3; cf. 12-13).
Nem sempre as reputações correspondem à realidade. Mas Rocke sugere que essa fama de Florença tinha fundamento. Cita farta evidência a partir das atas dos Oficiais da Noite (Ufficiali di notte), magistratura estabelecida em 1432 precisamente para reprimir e perseguir os praticantes de sodomia.
Durante os setenta anos em que durou esse serviço, de 1432 a 1502... desenvolveu a perseguição mais severa e sistemática de atividades homossexuais do que em qualquer outra cidade pré-moderna. Nessa pequena cidade de aproximadamente 40.000 habitantes, anualmente por quatro décadas do século quinze cerca de 400 pessoas foram implicadas e 55 a 60 condenadas por causa de práticas homossexuais... Assim, cerca de 17.000 indivíduos ou mais foram incriminados pelo menos uma vez pelo crime dew sodomia, e 3.000 acabaram condenados.
Esses extraordinários números fornecem certo sentido da dimensão, da vitalidade, e da importância contraditória do homossexualismo na vida sexual e social de Florença. A sodomia era considerada ostensivamente o pior e mais temível dos pecados sexuais, e estava entre os crimes mais controlados; contudo, no final do século dezesseis, a maioria dos homens haviam sido acusada oficialmente de incorrer nesse tipo de relacionamento (Rocke, 4-5).
Vemos, de um lado, em Florença, nos primórdios do Renascimento, intensa preocupação da elite pelo mundo clássico que bem poderia significar a legitimação de relações sexuais entre homens; ao mesmo tempo, os ensinamentos da Igreja contra a sodomia apoiavam leis destinadas a punir com severidade os faltosos, incluindo a morte na fogueira - e particularmente em Florença encontramos claras decisões das classes governantes para reprimir a sodomia considerada por eles sério problema moral e social.
De que lado estaria Miguel Ângelo, solteiro, como a maioria dos homens de sua idade? Tinha 26 anos quando começou a criar Davi. Embora jovem e de família falida, sua reputação artística era elevada. Teria essa reputação lhe servido para angariar certa medida de proteção quando se deixasse levar pela aparente paixão por jovens atraentes? A reputação artística não impedira que Sandro Botticelli, com 57 anos de idade, fosse acusado de sodomia em 1502, um ano depois de Miguel Ângelo ter começado a esculpir sua estátua, embora a acusação acabasse sendo retirada como, aliás, também aconteceu com Leonardo da Vinci vinte e cinco anos antes (1476) (Rocke 139, 298 n. 120-21). (Sobre o homossexualismo na arte italiana renascentista, em geral, e a sexualidade de Miguel Ângelo, em particular, cf. Liebert, 270-311; Saslow 1986:17-62; 1988; 1991: 13-18, 26-29; Sternweiler 1993; Kemp, 198; e a crítica de Beck, 143-54).
Os argumentos sobre a importância política da estátua de Miguel Ângelo, particularmente anti-Medici, têm dois lados em vista da séria consideração da situação social do artista na Florença dos Oficiais da Noite. As pesquisas recentes deixam absolutamente claro que no contexto da Renascença, "era impossível e descartável qualquer argumento sobre sexualidade sem o reconhecimento de sua relação com a política" (Goldberg, 10; cf. Bray 1982; 1994; Smith 1994). Os homens que se mostrassem rebeldes contra a "natureza" bem poderiam também se mostrar perigosos para a sociedade e para a religião.
Dada a immportância dos relacionamentos sociais homossexuais com os homens florentinos da Renascença, conclui-se que o comportamento homoerótico era potencialmente perigoso para aqueles cujas vidas e trabalho tangenciavam atividades de ordem política. Esse deve ter sido o caso com Miguel Ângelo. A sexualidade sempre foi potencialmente política.

(4) A estátua de Davi de Miguel Ângelo descoberta

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Considera-se, em geral que o bronze de Donatello e o gigantesco mármore de Miguel Ângelo para representar Davi representem os mesmos ideais da Renascença a respeito do nu masculino - muito embora sejam bem diferentes entre si. As dimensões homoeróticas da pequena estátua de bronze são universalmente reconhecidas, incluindo a atribuição feita por W. Janson a Donatello do epiteto dessa obra: "le beau garçon sans merci" (Janson, 85), bem como afirmações de que o significado político da estátua exaltava a liberdade contra a tirania. Mas no caso do Davi de mármore, muito se tem falado de sua importância política (liberdade contra tirania) mas pouco sobre sua dimensão sexual. O comentário de James Saslow está entre as exceções:
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Seu colosso nu de dezoito pés não se parece com o adolescente biblicamente correto de Donatello, mas um magnificamente musculoso jovem adulto, entusiasmado e extraordinário antecipando a luta contra Golias. O simbolismo oficial da estátua era ao mesmo tempo religioso e cívico - Davi era o mascote da cidade - mas desde Donatello o tema da estátua adquirira conotações eróticas. Miguel Ângelo representa aqui a beleza masculina com seu esplendor físico. O artista identificava-se psicologicamente com o corajoso herói - transformado por ele num jovem aproximadamente de sua idade - e provavelmente da mesma sexualidade. Embora suas fantasias íntimas permanecessem implícitas, deveriam ter sido amplamente percebidas (Saslow 1999: 96-7; cf. Bohm-Duchen, 21).
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Os críticos, em geral, quase não mencionam esse assunto. A estátua seria assexuada. Aqueles enormes genitais não passariam de meros apêndices necessários, à moda clássica antiga, ao jovem herói que franze as sobrancelhas ao se sentir ameaçado pelo opressor.
Naturalmente, Miguel Ângelo talvez nada tivesse a ver com o bronze precedente. Sua escultura deveria ser diferente daquela. Na verdade, procurou representar determinado momento diferente da narrativa bíblica.
Contudo, como sugere Saslow, como seria possível ignorar o famoso bronze posto que era a primeira estátua a retratar o jovem Davi nu, encarregada de gerar torrentes de jovens Davis - sempre quase despidos - em imitação? Parece-me que se apaixonara pelo Davi de Donatello, querendo ou não, e que tratou de encarar à sua maneira o tema homoerótico de Donatello. O significado político ou cívico é latente. A maioria dos contemporâneos percebia mais a "mensagem aberta" e não "a tensão interior", sugere Michael Levey (146). Entretanto, a tensão equilibrada que brotava do interior da estátua era bastante reconhecida. É aí que Miguel Ângelo, amante da beleza masculina, mais se sente em casa. Deixa-se tomar entre o desejo e a ação, entre a liberdade e a opressão, no momento e no espaço onde a sublimação parece o único caminho para a vitória. O Davi de Donatello contempla com satisfação a sua conquista. O de Miguel Ângelo aguarda ansiosa e persistentemente a chegada do inimigo - ou será ele um amante? Seus genitais descobertos nos fazem lembrar de sua afinidade com o conquistador erótico de Donatello, mas ao mesmo tempo seu repouso está de acordo com o repouso da figura gigantesca em sua totalidade, coisa que tende a diminuí-los, tornando-os inconseqüentes, invisíveis e, afinal, encobertos. O Davi de Miguel Ângelo é a tentativa gigantesca de sublimar o homoerotismo iconoclasta de Donatello.

(5) O Davi bíblico: descoberto
Até recentemente, embora a sugestão tenha sido levantada, poucos comentaristas têm encarado com seriedade a narrativa do relacionamento de Davi com Jônatas em termos de homossexualismo (na falta de termo mais adequado). Parecia a esses estudiosos que perceber nesse episódio a possibilidade de relacionamento sexual era "ler demais", ir muito longe e até mesmo perversão. Por outro lado, qualquer leitura que pusesse a linguagem do amor no âmbito da linguagem política do convênio (ou aliança) entre o vassalo e o senhor, seria digna de consideração (ver , por exemplo, Thompson).
Mas, naturalmente, como acreditam alguns nesta última década (até mesmo Roland Boer), a leitura "homossexual" do texto bíblico é bastante viável (cf. Schroer e Staubli; Fewell e Gunn, 105-108, 141-63; Nissinen, 53-6, 124-34). Vou mencionar brevemente o rico lamento de Davi pela morte de Jônatas.
"O teu amor é para mim mais maravilhoso do que o amor das mulheres". Davi situa seu relacionamento com Jônatas sob nova luz. Compara seu amor com o amor das mulheres. Jônatas pertence nesse relacionamento à posição da mulher mesmo para superá-la. Dessa forma, Jônatas alinha-se com o elemento passivo: que é penetrado. Davi seria o ativo: aquele que penetra mesmo se, como corretamente observa Boer, Davi seja quase sempre passivo em seus relacionamentos (Boer, 26-28). A retórica do texto faz de Davi o "homem". Duplamente, pois era notável sua coleção de mulheres! Assim, as palavras em louvor de Jônatas, que ele subscreve, também o desvalorizam. Ainda mais quando na qualidade de príncipe real deveria ter representado o "homem" para a "mulher" do oficial. Davi reverteu os papéis sexuais da mesma forma como revertera os políticos. Ao reivindicar a relação homossexual, embora estritamente em seus termos, transforma-a na proclamação de sua ascendência, seu domínio inevitável e no final da casa de Saul. O sexual é sempre o potencialmente político.
A razão pela qual esta leitura não falada tornou-se falada é, naturalmente, o que ela tem a dizer a respeito de contexto, de espaço e tempo - a localização do texto no espaço ocupado pelo movimento feminista dos últimos trinta anos no Ocidente e especialmente nos Estados Unidos e, igualmente, pelo surgimento do movimento gay de libertação. Dessa forma os genitais de Davi no livro de Samuel começaram a ser descobertos.

(6) Davi fragmentado: proliferação do espaço e dissipação do sentido
Os genitais de Davi na estátua de Miguel Ângelo têm sido descobertos nos últimos anos à medida que a estátua começou a ser adotada pela comunidade gay, certamente nos Estados Unidos (cf. Saslow 1999:96) como emblema da liberação homossexual. Em tal contexto, os genitais - ocultos com folhas de figueira do olhar lascivo, tornados invisíveis pela política da Florença renascentista, e vaporizados pela sua circunscrição à "arte nobre"(por meio do espaço dos museus, dos "livros de arte" e das salas de aula das universidades - voltaram a se encher de novo de sexualidade.
Mas se a sexualidade presente no Davi textual, no corpo que Miguel Ângelo lhe deu, tem sido acolhida pelas comunidades gays atuais, esse fato, parece-me, não será permanente. Essa acolhida é escorregadia, não apenas porque a figura considerada agora "gay" seja ambígua, em primeiro lugar na narrativa bíblica, mas também porque o gigante conserve em si certa ambigüidade, diferentemente de Miguel Ângelo. Enquanto o bronze de Donatello se mostre agressivamente homoerótico, o Davi de Miguel Ângelo permanece na defensiva. Será que ele é? A pergunta permanece.
Entretanto, mais importante do que isso, na determinação da recolocação do Davi despido, está o poder da tecnologia de arrebentar todos esses espaços. A fotografia e os cartões postais, produtos da industrialização, fizeram proliferar os espaços habitados por Davi. As mudanças tecnológicas criaram a distribuição em massa de suas imagens, difundindo-as além do alcance das elites que até então controlavam-nas e as consumiam como "arte nobre". Na verdade, o poder da imagem de Davi, enquanto imagem de liberação gay, veio em parte precisamente da autoridade da "arte nobre" em irônico contraponto com a autoridade derivada da Bíblia. Mas a tecnologia, especialmente com a entrada de Davi no espaço eletrônico, não cessa de encontrar novas maneiras de subverter a autoridade daquela "arte nobre" e, com ela, os últimos vestígios da autoridade bíblica. Pela mesma razão, qualquer que seja o sentido atribuído ao ícone desnudo da liberação gay, estará sempre sujeito aos desafios da proliferação dos espaços com seus múltiplos significados, competindo entre si, assimilando-se mutuamente e se fragmentando. Essas inúmeras modificações da imagem de Davi transformam-no em imagens tão ubíquas como qualquer hamburger do MacDonald, muito embora sem o reconhecimento de uma marca. Que significa esse Davi agora? William Hart, ao considerar a contribuição de Edward Said e de Theodor Adorno à cultura, chama a minha atenção para a crítica de Adorno à popularização da música popular ("On the Fetish Character in Music and the Regression of Listening": "Sobre o caráter fetichista na música e a regressão da escuta").
A música (argumenta Adorno) deixou de representar ataque revolucionário e livre aos privilégios das classes dominantes, e degenerou ao se tornar "serva" do consumismo. A despolitização resulta da vulgarização da arte que vai da repetição impensada até o consumo irrelevante. Quando a obra musical é tocada sem parar, acaba "exausta como a Madona da Sistina no quarto de dormir"... Desaparece a possibilidade da crítica e surge, em seu lugar, o vazio ... a música torna-se diversão, mera oportunidade de consumo (Hart, p. 30 e 30-39).
Podemos digitalizar Davi, não apenas a partir de fotografias mas da "coisa real" com a finalidade de distribuí-lo rapidamente a especialistas e a museus para ser estudado mais "acuradamente" (Projeto do Museu Digital de Miguel Ângelo da Universidade Stanford - graphics.stanford.edu/projects/mich/). Mas, como revela o mercado, não precisamos de exatidão para reconhecer a figura de Davi. Com precisão ou não, podemos vê-lo e usá-lo de diversas maneiras. Podemos vestí-lo e dar-lhe um lugar em nossas casas e o significado que bem desejarmos. Eu trabalho no Texas. Assim, naturalmente, sinto-me bem com um Davi ocidental. Facilmente. Podemos escolher entre vestí-lo ou deixá-lo nu, entre expor ou ocultar seu problemático significador, aproximá-lo ou afastá-lo do Davi de Donatello, determinando sua sexualidade com a simples fixação de um ímã na porta do regrigerador, ou do movimento do cursor na tela do computador. E assim facilmente obrigamo-lo a expressar a confusão do gênero, sempre rondando os lugares onde as fronteiras da sexualidade acham-se em disputa.
Ao mesmo tempo podemos retomar o Davi político pela simples substituição de sua cabeça. Mantemos o mesmo corpo mas com nova cabeça: nova política. E mais. Podemos trazer apenas a cabeça de Davi para nossa casa - em partes - para contrapô-la à cabeça de Golias. Assim como fazem os críticos modernistas da Bíblia - crítica histórica - que fragmentam os textos bíblicos onde Davi aparece, separando uma parte de sua história, vida e pessoa, de outras; assim, também, os decoradores pós-modernos das geladeiras ou de armários podem cuidadosamente usar à vontade seus membros. Temos, pois, Davi fragmentado - arranjado como quisermos. Aí está seu nariz, seus olhos, as orelhas, a boca... Ainda não vi mas é possível estranhos usos até mesmo de seu pênis. Enquanto isso não acontece podemos conviver com um Davi mais suave.
Davi decapitou Golias e levou sua cabeça para Jerusalém na ponta de sua espada, segundo nos contam a Bíblia e as representações artísticas da Idade Média. Agora podemos ter a cabeça de Davi ou seus sinais num poste, como ornamento, como os corpos de Saul e de Jônatas decorando as paredes de Gath. Davi em fragmentos: o verdadeiro Davi pós-moderno.
Os publicitários gostam de Davi por ser mercadoria universalmente reconhecida. Podemos possuí-lo com a cabeça ou sem ela. Ele vende alimentos e restaurantes. Vende livros, desde as mais sofisticadas obras da academia bíblica (o livro de Flanagan, David's Social Drama - O drama social de Davi, traz talvez pela primeira vez um holograma usado em livro), sobre a cabeça do gigante, até as de consumo mais popular, sobre outros temas. O Davi do estilingue, vestido, ainda está por aí embora pouco visitado. Os publicitários preferem a "arte nobre" (mas não a de Donatello) bem como a high tech : a figura de alta qualidade de Davi qualifica produtos também de alta qualidade. E sempre há lugar para piadinhas a respeito de seus genitais ou de seu traseiro (coisa que Giovanni Cellini achava que deveria ser vista). Davi serve até para vender "jogos eletrônicos gays familiares" ao lado de uma nova companheira, bem distante de Jônatas e de Tommaso Cavalieri, em ardiloso truque, a Vênus de Bougereau.
Por fim, o próprio gigante também se vende a si mesmo - reproduzido em pedra antiga, com uma pequena folha de figueira, por apenas 138 dólares incluindo transporte e entrega a domicílio.

(7) Ensaio Pictográfico
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Professor da Christian University of Texas, Estados Unidos - Este texto foi traduzido por Jaci Maraschin e publicado com permissão do autor.

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