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terça-feira, 6 de outubro de 2020


 



 




O que se passa neste momento já não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política.

Acabou de partir, mas já com cem anos, o escritor francês que escreveu a definição do racismo mais adoptada. Foi Albert Memmi, nascido na comunidade judaica pobre de Tunes. A língua materna foi o árabe, mas depois estudou numa escola rabínica e na Aliança Israelita Universal, prosseguiu em francês em Tunes, depois na Argélia e finalmente na Sorbonne. Foi sempre colono pobre e estudante pobre. Este cruzamento de origens, de culturas e de classes numa só pessoa pode ser simbólico da complexidade da questão. O seu livro Le racisme, editado pela Gallimard em 1982, está esgotado. Felizmente que uma larga bibliografia actual, ligada à investigação histórica e às polémicas e movimentos actuais, tem dado muita informação sobre o tema.A primeira das razões do racismo está expressa na definição de Memmi de 1964 e que ainda consta na Encyclopaedia Universalis
O racismo é a valorização, generalizada e definitiva, de diferenças reais ou imaginárias, para proveito do acusador e para detrimento da sua vítima, a fim de justificar os seus privilégios e a sua agressão.” Embora os teóricos considerem que o racismo só existe a partir do século XVIII, a verdade é que foi nessa data que foi teorizado, mas existe desde que povos foram colonizados e dominados por outros povos e, particularmente no que nos diz respeito, às grandes potências colonizadoras europeias e americanas desde que, a partir do século XV, a acumulação de capital se fez à custa do comércio triangular – captura de escravos na costa africana, deslocação de cerca de 12 milhões de africanos para a América, aplicação do trabalho escravo nesse continente ao sul e ao norte, viagem dos produtos para a Europa para serem comercializados.
É claro aqui quem eram os explorados e quem eram os exploradores. Questões de classe, pois. As grandes fortunas europeias fizeram-se dirigidas por escravocratas, que comandavam este triângulo. As portuguesas, as espanholas, as inglesas, as alemãs, as francesas, as holandesas e até as dinamarquesas. Os explorados eram os africanos de pele pigmentada. Os exploradores não eram os pobres marinheiros de pele clara, embarcados a fugir da miséria, da fome, da aridez da terra de tantas zonas de Portugal. Foram eles os que tiveram coragem para se fazer ao mar, foram eles que descobriram o que de facto estava por descobrir, os caminhos por mar para outras terras, onde viviam outras pessoas. Foram eles, como Fernão Magalhães e todos os que morreram pelo caminho, que ousaram encarar o desconhecido.
Os aproveitadores estavam em terra. Esses, os marinheiros, não são os “culpados”, tal como não são os “brancos” pobres que por aqui iam ficando na Europa, embora acabassem por beneficiar de migalhas. A linha de divisão passa entre explorados e exploradores, entre classes. A “culpa” não é dos portugueses em geral, mas de uma dúzia de genealogias hereditárias que tiveram sempre o poder e contaram uma história de fadas a sucessivas gerações, a história do Império. Mas acontece que os explorados, os africanos e afrodescendentes, vieram de zonas próximas do equador, tinham pele pigmentada para sobreviver, tal como os nórdicos da Europa tiveram que perder a pigmentação para obter vitamina D. Foi há pouco tempo, segundo alguns investigadores só há “brancos” há cerca de 10.000 anos. Mas a verdade é que os explorados tinham uma marca, a cor da pele e algumas feições. Essas diferenças serviram os teóricos do racismo do século XVIII. Mas a realidade já existia, provam-no as palavras iluminadas do Padre António Vieira, de Bartolomeu de las Casas e as crónicas de Zurrara, em plena época escravocrata. 
PÚBLICO -
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A morte de George Floyd fez ressurgir o movimento "Black Lives Matter" 
Já em 1684, François Bernier definira quatro “raças”, Lineu em 1758 manteve quatro, mas substituiu os lapões pelos americanos e, em 1775, Johann Blumenbach, naturalista alemão, cheio de boas intenções humanistas, coleccionador de crânios, achou que o mais belo era o de uma escrava caucasiana e partiu daí a invenção caucasiana, que ainda hoje é oficial e administrativa, apesar de todos os desmentidos dos estudos genéticos, da UNESCO declarar em 1950 que não há raças humanas e a multiplicidade de estudos do genoma desde 2000 mostrar que somos todos uma mistura de origens, felizmente. Se não, já uma parte da humanidade tinha sucumbido a doenças raras. No entanto, a marca ficou.
À escravatura seguiu-se o colonialismo, para Portugal com trabalho forçado até 1974. Nos EUA, mesmo após a abolição, a marca foi ficando como sinal de classes, a baixa. Não venham pensamentos primários dizer que há afrodescendentes que são ricos e ilustrados, e vide o casal Obama, e que há brancos pobres. Há. Mas quando se vai ver os estudos que aplicam grandes amostras e estatísticas válidas a maior percentagem de pobres são afrodescendentes, a maior percentagem sem cobertura médica são também eles e os chamados “latinos”. E a maior percentagem de vítimas da covid-19 são eles. E há diferenças nas universidades conforme o seu ranking e até conforme o objecto das teses. Felizmente, dos EUA vem o pior e o melhor, porque todos estes estudos têm origem nesse país. Curiosamente, os afrodescendentes têm alguma marca à vista, mas têm muito mais marca “branca”. É que os sucessivos escravocratas, exploradores, fazendeiros, não levavam consigo mulheres. Foi também de violação e submissão que se fez esta população.
Mas eis que levanta a cabeça, porque Floyd já não conseguiu levantar a dele (quanto ao nosso imigrante assassinado no aeroporto, estamos quietinhos, mas é paralelo). Juntam-se jovens “brancos” e a revolta alastra por 147 cidades dos EUA. Há polícias a pedir perdão de joelhos. Há tropa que não quer ser enviada para os Estados em revolta (é uma longa história o envio da tropa federal para os Estados nos tempos das grandes revoltas). O Capitólio é enfrentado pela multidão.
O que se passa neste momento já não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política. 
Contra as leis racistas que este Presidente foi recuperar depois de Obama ter acabado com elas. Contra o sindicato dos polícias que fala nos comícios a apoiar o Presidente.
É a revolta contra o sistema? Recuperando Marx, o que ele profetizou foi que o socialismo a caminho do comunismo se viria a dar numa sociedade desenvolvida e industrializada, alfabetizada. Infelizmente, por acasos políticos, a revolução deu-se num país de muitos camponeses e poucos operários, sem instrução. E correu mal. Houvesse agora nos EUA uma vanguarda e um programa alternativo que defendesse a liberdade, e aí sim, podiam tremer os “senhoritos”. A história é lenta, mas um dia há-de vir. E parece vir por aí. Para nos animar, neste tempo em que se agravam as desigualdades.

terça-feira, 23 de junho de 2020

O Financiamento da CIA ao PS: Documento Inédito


No passado dia 13 de Maio o canal de televisão holandês Nederland 2 (equivalente à nossa RTP2) emitiu uma reportagem de 29 minutos intitulada «Dinheiro Secreto Americano para os Socialistas em Portugal» («Geheim Amerikaans geld naar socialisten Portugal»). A reportagem foi preparada pela própria Nederland 2, para a sua série de programas históricos «Outros Tempos» («Andere Tijden»: http://www.nederland2.nl/programmas/642-andere-tijden/uitzending/44643?missed=true).

A reportagem (em holandês, com entrevistas noutras línguas) apresenta testemunhos em primeira-mão dos que, no início de 1975, estiveram envolvidos na cadeia de financiamento do PS com dinheiros da CIA. Os entrevistados são: Mário Soares (dialoga em francês); Harry van den Bergh, o «correio» clandestino, membro do PvdA, Partido do Trabalho holandês, homólogo do PS; Hans-Eberhard Dingels, secretário de estado do governo SPD (o homólogo alemão do PS) da Alemanha da época, encabeçado por Willy Brandt (dialoga em alemão); Arthur Hartman, secretário assistente de estado dos EUA para a Europa e Canadá, durante o governo de Gerald Ford e do tristemente famoso secretário de estado Henry Kissinger, o homem que deu luz verde à ocupação de Timor-Leste pela Indonésia (dialoga em inglês); José Rentes de Carvalho, escritor residente na Holanda, que fornece ao público holandês esclarecimentos sobre a revolução dos cravos.
*    *    *
Antes de passarmos à reportagem vale a pena lembrar o que já era conhecido na altura dos acontecimentos, em Março de 1975.
Logo após o 25 de Abril de 1974, Mário Soares, como ministro dos negócios estrangeiros do 1.º governo provisório, efectua um périplo pela Europa no sentido de granjear apoios para o novo Portugal saído da revolução. A 4 de Maio visitou Willy Brandt que promete o apoio de Bona. Iremos ver na reportagem que, afinal, o «apoio de Bona» não era só (ou propriamente) para Portugal.
A 3 de Março de 1975, poucos dias antes do golpe contra-revolucionário de Spínola do 11 de Março, a revista Extra de Berlim Ocidental publica um artigo com o título «CIA planeia golpe em Portugal antes do fim de Março» ([1]). O artigo afirmava (ênfase nosso): «O segundo factor da política da República Federal Alemã […] seria o interesse num regime "livre de comunismo" para Lisboa. Neste aspecto, o SPD desempenha um papel importantíssimo, ao lado do Partido Socialista Português, chefiado por Mário Soares (como se sabe, a fundação do PS e a nomeação de Mário Soares para seu presidente realizou-se na Alemanha Federal, durante o seu exílio, com o apoio da Fundação Friedrich-Ebert do SPD [2-3])». Quanto ao "livre de comunismo" deve ler-se sem os atributos de um desenvolvimento económico soberano e a favor do povo, conforme constava das teses aprovadas no 3.º Congresso da Oposição Democrática (Aveiro, 4 a 8 de Abril de 1973) e se plasmava no programa do MFA: política anti-monopolista, direitos dos trabalhadores, controlo económico, reforma agrária, etc. Quanto à Fundação Friedrich-Ebert do SPD, veremos adiante o seu papel e as suas ligações.

Continuava o artigo da Extra (ênfases nossos): «Entretanto, porém, o ministério dos negócios estrangeiros e o grupo de políticos do SPD encarregados dos assuntos externos […] lançaram-se já na tarefa de encaminharem as eleições de Abril para um rumo do seu interesse. Objectivo: impedir que os socialistas portugueses se unam aos comunistas. Este objectivo deverá ser conseguido através de um pesado apoio financeiro da República Federal e dos Estados Unidos, destinado sobretudo à ala direita do partido de Mário Soares. Uma das pessoas de confiança do lado português é o secretário de Estado das Finanças, Constâncio. O SPD prometeu já à ala direita do Partido Socialista a quantia do 90.000 marcos (aproximadamente 900 contos) […]». Mais à frente o artigo da Extra refere que «Bruno Friedrich [porta-voz do SPD] terá aconselhado Soares a proceder com mais flexibilidade para com a ala esquerda do seu partido». Isto é, o SPD não tinha dúvidas sobre quem encabeçava a ala direita do PS, apesar da afirmação bombástica de Mário Soares no Congresso do PS a 14 de Dezembro de 1974: «O nosso objectivo final é a destruição do capitalismo» (Jornal de Notícias).
Dizia ainda o artigo: «No que respeita às actividades e planos da CIA, a sua aspiração máxima é a guerra civil (já considerada por Soares como “possível”, ao apontar os comunistas como culpados de provocações ultra-esquerdistas, [provocações essas] possivelmente da autoria da CIA). […] Data marcada para esta operação da CIA: "ainda antes do fim de Março".». Isto é, já antes do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975 o modus operandi de usar o pretexto CIAtico da provocação ultra-esquerdista era avançado. A Extra também deixava claramente entender que o golpe teria o apoio do PS.

Dizia ainda a Extra «[…] o embaixador norte-americano em Lisboa, o agente da CIA Frank Carlucci, assumiu a condução das operações para um golpe de Estado planeado pela CIA».
Em 5 de Março de 1975 Carlucci afirmava que «nunca trabalhei nem trabalho para a CIA» (Jornal de Notícias). Era uma despudorada mentira, mais tarde oficialmente desmentida. Era também noticiado que os embaixadores europeus, nomeadamente o alemão, consideravam fantasiosas as notícias de um golpe previsto para Portugal envolvendo a CIA e a ala direita do PS. Divulgadas também as afirmações de Jaime Gama de que as «notícias são completamente falsas e inserem-se numa campanha anti-socialista que arrancou há algum tempo». Mas os acontecimentos e documentos posteriores vieram demonstrar inequivocamente que o que transpirou na época sobre o «golpe» não era nem fantasioso nem falso.
*    *    *
Voltemos à reportagem. O repórter, num preâmbulo do programa, apresenta Harry van den Bergh (em 1974 um jovem membro do PvdA holandês), como o peão de uma operação clandestina de financiamento, financiamento esse que refere como «a ponta do iceberg» de uma operação «de poder da grande política a nível internacional». Num breve recorte do preâmbulo, Van den Bergh afirma que foi contactado expressamente, a pedido de Willy Brandt, «o grande homem da Europa», para levar dinheiro clandestinamente para os «camaradas» socialistas em Portugal, o que aceitou. A ideia que é sugerida, e repetida ao longo do programa, é a de que van den Bergh foi escolhido por ser considerado perito neste tipo de operações.
Antes do tema central da reportagem é feita uma breve introdução sobre a revolução do 25 de Abril, pelo repórter e por José Rentes de Carvalho. São também mostradas imagens do périplo que Mário Soares efectuou pela Europa (Londres, Amsterdão, Bona) no início de Maio de 1974, como Ministro dos Negócios Estrangeiros do 1.º governo provisório (que referimos acima).
Aparece então Mário Soares na reportagem para dizer o seguinte: «Comecei por Londres, de Londres fui à Holanda, den Uyl, e daí fui a Willy Brandt. Falei com Willy Brandt. Toda a gente reconhecer [sic] a legitimidade da revolução». Note-se que Soares não diz «toda a gente apoiou a revolução» ou «toda a gente compreendeu a revolução». O «Toda a gente reconhecer a legitimidade da revolução» é pronunciado com ênfase por Soares, em tom demonstrativo e gratificante. Para Soares, aparentemente, a legitimidade da revolução não procedia do povo; havia que a procurar nas potências estrangeiras. (Oh Londres, Amsterdão e Bona: permitis ou não que o povo português se revolte?) Havia que obter dessas mesmas potências o gratificante «reconhecimento da legitimidade» e tinha sido essa a tarefa que tinha ido cumprir como ministro dos negócios estrangeiros em trânsito pela Europa dos poderosos. Quase se tem a sensação que Soares lhes disse qualquer coisa como «Os meus compatriotas fizeram umas traquinices; vocês desculpem lá isso e reconheçam a revolução.» e regressou todo contente porque os poderosos tinham reconhecido, dado o aval, à revolução. Que seria do povo português se Londres, Amsterdão e Bona não reconhecessem a legitimidade da revolução? Bem, se calhar havia que rebobinar a fita, voltar com tudo para trás, recolher o MFA aos quartéis e colocar Marcelo no Poder.
Mário Soares prossegue assim: «Eles ajudaram-nos. Por exemplo, os alemães que nos ajudaram enormemente.». Nesta precisa altura o ouvinte da reportagem ainda pode pensar que Soares, nas funções de ministro dos negócios estrangeiros, informa sobre a ajuda que obteve para a revolução portuguesa, para o povo português. Infelizmente não é assim. De facto, Soares prossegue desta forma: «Eles [os alemães] ajudaram-nos a obter uma sede. Deram-nos dinheiro para… porque nós tínhamos necessidade de um jornal… de transformar um pequeno jornal num grande jornal socialista, etc., etc.». Soares, portanto, confessa que se esqueceu que estava no estrangeiro como representante oficial de Portugal. Esqueceu-se do povo português mas não se esqueceu que era chefe do PS. Isto é, usou o dinheiro dos contribuintes e abusou da sua confiança, colocando-os (o dinheiro e a confiança) ao serviço de fins meramente partidários.
Depois desta introdução, a reportagem entra, então, no âmago da questão.
O secretário de estado do governo de Willy Brandt, Hans-Eberhard Dingels, refere que o SPD achou que devia ajudar o mais possível os socialistas. Van den Bergh confirma: «Willy Brandt [disse]: devemos ajudar os nossos camaradas (genossen)».
Dingels achou que a pessoa para levar o dinheiro deveria ser Harry van den Bergh. Este concordou; recebeu um telefonema de Bona a dizer onde devia levantar o dinheiro. Levantou-o num banco discreto da Holanda: o Nederlandsche Middenstandsbank, em Amstelstraat, Amsterdão. Não enviaram o dinheiro directamente para Portugal alegadamente e segundo Dingels, porque a lei portuguesa não permitia enviar dinheiro para partidos como o socialista. De facto, não existia tal lei na altura nem foi essa a razão, como logo a seguir Dingels se descai a dizer: «era para que as autoridades [portuguesas] não soubessem.».
Van den Bergh foi esperado no aeroporto por «amigos» e posto no Hotel Ritz. Fizeram isso seis a sete vezes. Revela ainda van den Bergh que, nas últimas duas entregas, receando dificuldades, contactou o ministro dos negócios estrangeiros da Holanda (Max van der Stoel, também do PvdA) o qual conferiu a van den Bergh o cargo oficial de correio do Ministério, assegurando-lhe, portanto, imunidade diplomática. Na reportagem não fica esclarecido quem em Portugal recebe o dinheiro e quais as datas das entregas. Quanto a este último ponto deduz-se, porém, conjugando as várias informações da reportagem, que se trata do período em torno de Março de 1975, a que se reporta também o artigo da Extra acima referido.
Tendo o repórter perguntado a Dingels sobre a origem do dinheiro, obtém a resposta de que «só ele [Dingels] e muito poucos do SPD sabiam da origem do dinheiro» porque «o silêncio é de ouro». Quando interrogado sobre se mais alguém fez o que fizeram os do SPD, diz Dingels: «os ingleses… os suecos…, num total de 7 ou 8 pessoas ["correios"]». Dingels recusa-se a dizer o total de dinheiro enviado. Van den Bergh estima o total em mais de 800 mil euros o que nos parece uma estimativa aceitável tendo em conta os 90.000 marcos que a revista Extra divulgava (ver acima; [4]).
Qual a origem do dinheiro? Hans-Eberhard Dingels, secretário de estado do governo de Willy Brandt, escusa-se a responder.
A resposta é dada por Arthur Hartman (menos tímido que Dingels), na altura secretário de estado dos EUA. Arthur Hartman relata a oposição de Ford e Kissinger à revolução portuguesa «dada a influência do PCP». Refere também a questão da NATO (van den Bergh diz que a NATO considerava expulsar Portugal do seu seio).
Hartman diz que o Grupo de Berlim (Alemanha, Inglaterra, França, EUA), analisando o que se passava em Portugal, concluiu que tinha de pôr Mário Soares no poder. Diz ainda que usaram o «canal alemão» para fornecer «fundos e equipamento» a «Mário Soares e ao Partido Socialista». Refere que «os alemães já tinham experiência de como ajudar financeiramente outros partidos socialistas, através da Fundação Friedrich Ebert» ([2-3]). Os EUA limitaram-se a fornecer o dinheiro através dessa fundação.
Hartman diz que não sabe concretamente de «que bolso» concreto saiu o dinheiro, mas que «está bem convencido de que foi dinheiro da CIA que foi enviado através deles [Fundação Friedrich Ebert]». O percurso do financiamento ao PS foi, portanto: CIA à Alemanha (Fundação Friedrich Ebert) à Holanda. Perante esta revelação diz van den Bergh com cara de convencido: «pode muito bem ter sido»; acrescenta ainda que não tem nenhum problema em ser correio de dinheiro da CIA, embora diga que não foi agente da CIA… Perguntado a Hartman quantas pessoas sabiam do financiamento da CIA, diz este que «na época provavelmente muito poucas». Sobre se Soares sabia disso, a resposta de Hartman é inequívoca: «Estou seguro que sim. Mas nunca discuti o assunto com ele». Colocada a mesma pergunta a Mário Soares, diz este: «Como podia eu saber? Eu não sou polícia, monsieur. Não sei.». Hartman, no seguimento da entrevista, justifica o segredo da operação: tratava-se de evitar que se dissesse na Europa que os EUA tinham usado a CIA para ajudar Soares; para não denegrir a figura de Mário Soares [perante os portugueses e os europeus]. A finalizar a reportagem um Soares nitidamente perturbado produz uma resposta ambígua e atabalhoada, em que fundamentalmente argumenta que não podia ir anunciar publicamente que tinha recebido dinheiro da Holanda e que se a Holanda teve de ir buscar o dinheiro a outro lado ele não ia indagar sobre isso.


Harry van den Bergh, o «correio» e «socialista» holandês, que disse não ser da CIA mas não se importar de ajudar a CIA. Como em Março de 1975, quando levou o financiamento da CIA para o PS.
*    *    *
Mário Soares, no Congresso do PS a 14 de Dezembro de 1974, ainda dizia «O nosso objectivo final é a destruição do capitalismo». Procurava, assim, como em muitas outras vezes quer anteriores quer posteriores, ludibriar os trabalhadores e os elementos do MFA que alinhavam pelo PS, procurando estabilizar uma base eleitoral. Mas o objectivo de acabar com a revolução e proceder à recuperação do capitalismo monopolista e latifundiário já não oferecia dúvidas a muitos da cúpula do PS. Efectivamente, o objectivo do financiamento da CIA ao PS-Mário Soares só podia, obviamente e por definição, ser um: acabar com a revolução. E se Soares ainda podia dizer (como ainda agora mantém) que desconhecia a origem do financiamento ao PS, o mesmo não se aplica quando, com conhecimento de causa, se aliou a Carlucci-CIA na organização do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975. Golpe que pôs precisamente em marcha, pela mão do PS, a recuperação do capitalismo monopolista e latifundiário e não a «destruição do capitalismo».

Mário Soares e Frank Carlucci (CIA) em encontro noticiado em 10/6/2011 pelo Jornal de Notícias. Dois amigos do coração, satisfeitos pelo seu trabalho na preparação do golpe de 25 de Novembro. Tudo com o objectivo da «destruição do capitalismo» em Portugal…


[1] O artigo da Extra vem transcrito em Ruben de Carvalho, Dossier Carlucci CIA, Edições Avante!, 1978. Livro imprescindível para a compreensão da história da contra-revolução em Portugal.
[2] Friedrich Ebert foi Presidente da chanada República de Weimar de 1919 a 1925. Tornou-se tristemente famoso por, enquanto representante da ala direita do SPD, ter perseguido duramente todos que se situavam à esquerda do SPD, terminando com o entendimento do SPD com o Partido Social-Democrata Independente Alemão (USPD). Deu luz verde à formação de corpos francos, constituídos por elementos desclassificados e criminosos da Alemanha, a quem incumbiu a tarefa de assasinar comunistas, membros do USPD e outros elementos e intelectuais progressistas. Abriu, assim, o advento do nazismo e a ascenão de Hitler.
[3] A Fundação Friedrich Ebert (FES), por trás de uma fachada respeitável de insituição que apoia por exemplo trabalhos académicos, não é mais que um dos suportes da CIA na Alemanha para levar a cabo operações clandestinas que devam surgir aos olhos da opinião pública como democráticas e até socialistas. É, na realidade, um dos institutos satélites do National Endowment for Democracy (NED), instituição americana ligada à CIA que se encarrega de organizar operações clandestinas que não interessa associar à CIA. A NED foi construtora do sindicato Solidariedade na Polónia e da Carta 77 na Checoslováquia. O presidente Bush qnunciou em 2004 o reforço para o dobro do financiamento da NED (http://www.voltairenet.org/article30022.html). A FES tem sido o veículo de outras ingerências da CIA em países que pretendem construir o seu futuro independentemente e controlando soberanamente os seus recursos. Actualmente a FES presta apoio na Venezuela aos que combatem o «chavismo» numa perspectiva pretensamente de «esquerda» (http://www.marxist.com/psuv-congress.htm). A FES também aparece associada ao NED no financiamento de operações contra-revolucionárias na Guatemala (1954), Cuba (1960), Chile (anos sessenta), etc. (http://www.pinknoiz.com/covert/ciaguatemala.html).
À luz destes esclarecimentos, o facto de «a fundação do PS e a nomeação de Mário Soares para seu presidente realizou-se na Alemanha Federal, durante o seu exílio, com o apoio da Fundação Friedrich-Ebert do SPD» não deixa de ser perturbador.
[4] De facto, pelas nossas contas, tomando em consideração a taxa de câmbio histórica $/DM no período de 1974 a 1999, a depreciação do dólar e a depreciação do euro, levam-nos a valores da ordem de 900 mil euros os 90.000 marcos mencionados pela Extra. Isto é, mesmo no que se refere ao valor «prometido ao PS» pelo SPD, a Extra não se enganava.

revolucaoedemocracia.blogspot.com

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Júdice e o «costismo»




Filipe Diniz

Júdice e o «costismo»


Qualquer reaccionário letrado tem lugar na comunicação social dominante. Se tiver um currículo de militância na extrema-direita tem praticamente assinatura, como acontece com José Miguel Júdice.
A seguir ao 25 de Abril, e na sequência da sua militância salazarista estudantil, andou por organizações colonialistas, fascistas e bombistas. Hoje, e há muito, é um dos oráculos que opina quase quotidianamente.
Achando pouco, o Público entrevistou-o mais uma vez (7 páginas + capa, 7.06.2020). A entrevistadora está à altura: Maria João Avillez. O diálogo é notável, e não apenas pelo aberto reaccionarismo de ambos. É igualmente notável pelo largo estendal de dislates, emitidos com todo o à-vontade de que a direita sabe hoje dispor na comunicação social. Não há lá ninguém para contrariar.
Júdice é entrevistado para opinar porque «adora fazer análise psicológica dos políticos» embora seja «mais exacto sobre os que conhece melhor», o que já seria extraordinário. Mas não tão extraordinário como por exemplo a afirmação sobre Mário Soares de que foi comunista, e «morreu comunista».
O reaccionário par de jarras faz o rasgado louvor do oportunismo e do manobrismo sem princípios. Está desejoso de descortinar o «bloco central» que aí vem (e que removerá a «extrema-esquerda» do «centro do poder»). Enche António Costa (e o «costismo») de elogios por isso mesmo. E por aí se explica o preencher 7 páginas do jornal com semelhante diálogo.
A direita conhece bem o PS. Não lhe bastam todas as matérias fundamentais em que está inteiramente alinhado à direita. É-lhe necessário – e imaginará que a situação actual é favorável nesse sentido – o regresso em pleno daquele PS que, em alternância com PSD e CDS, tem sido fiel executor das encomendas da política de direita.
Jornal Avante! - 18 de Junho 2020

domingo, 14 de junho de 2020

ISABEL DO CARMO, OPINIÃO - RACISMO E LUTA DE CLASSES



O que se passa neste momento já não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política.

Acabou de partir, mas já com cem anos, o escritor francês que escreveu a definição do racismo mais adoptada. Foi Albert Memmi, nascido na comunidade judaica pobre de Tunes. A língua materna foi o árabe, mas depois estudou numa escola rabínica e na Aliança Israelita Universal, prosseguiu em francês em Tunes, depois na Argélia e finalmente na Sorbonne. Foi sempre colono pobre e estudante pobre. Este cruzamento de origens, de culturas e de classes numa só pessoa pode ser simbólico da complexidade da questão. O seu livro Le racisme, editado pela Gallimard em 1982, está esgotado. Felizmente que uma larga bibliografia actual, ligada à investigação histórica e às polémicas e movimentos actuais, tem dado muita informação sobre o tema.A primeira das razões do racismo está expressa na definição de Memmi de 1964 e que ainda consta na Encyclopaedia Universalis: “O racismo é a valorização, generalizada e definitiva, de diferenças reais ou imaginárias, para proveito do acusador e para detrimento da sua vítima, a fim de justificar os seus privilégios e a sua agressão.” Embora os teóricos considerem que o racismo só existe a partir do século XVIII, a verdade é que foi nessa data que foi teorizado, mas existe desde que povos foram colonizados e dominados por outros povos e, particularmente no que nos diz respeito, às grandes potências colonizadoras europeias e americanas desde que, a partir do século XV, a acumulação de capital se fez à custa do comércio triangular – captura de escravos na costa africana, deslocação de cerca de 12 milhões de africanos para a América, aplicação do trabalho escravo nesse continente ao sul e ao norte, viagem dos produtos para a Europa para serem comercializados.
É claro aqui quem eram os explorados e quem eram os exploradores. Questões de classe, pois. As grandes fortunas europeias fizeram-se dirigidas por escravocratas, que comandavam este triângulo. As portuguesas, as espanholas, as inglesas, as alemãs, as francesas, as holandesas e até as dinamarquesas. Os explorados eram os africanos de pele pigmentada. Os exploradores não eram os pobres marinheiros de pele clara, embarcados a fugir da miséria, da fome, da aridez da terra de tantas zonas de Portugal. Foram eles os que tiveram coragem para se fazer ao mar, foram eles que descobriram o que de facto estava por descobrir, os caminhos por mar para outras terras, onde viviam outras pessoas. Foram eles, como Fernão Magalhães e todos os que morreram pelo caminho, que ousaram encarar o desconhecido.
Os aproveitadores estavam em terra. Esses, os marinheiros, não são os “culpados”, tal como não são os “brancos” pobres que por aqui iam ficando na Europa, embora acabassem por beneficiar de migalhas. A linha de divisão passa entre explorados e exploradores, entre classes. A “culpa” não é dos portugueses em geral, mas de uma dúzia de genealogias hereditárias que tiveram sempre o poder e contaram uma história de fadas a sucessivas gerações, a história do Império. Mas acontece que os explorados, os africanos e afrodescendentes, vieram de zonas próximas do equador, tinham pele pigmentada para sobreviver, tal como os nórdicos da Europa tiveram que perder a pigmentação para obter vitamina D. Foi há pouco tempo, segundo alguns investigadores só há “brancos” há cerca de 10.000 anos. Mas a verdade é que os explorados tinham uma marca, a cor da pele e algumas feições. Essas diferenças serviram os teóricos do racismo do século XVIII. Mas a realidade já existia, provam-no as palavras iluminadas do Padre António Vieira, de Bartolomeu de las Casas e as crónicas de Zurrara, em plena época escravocrata. 
PÚBLICO -
Foto
A morte de George Floyd fez ressurgir o movimento "Black Lives Matter" 
Já em 1684, François Bernier definira quatro “raças”, Lineu em 1758 manteve quatro, mas substituiu os lapões pelos americanos e, em 1775, Johann Blumenbach, naturalista alemão, cheio de boas intenções humanistas, coleccionador de crânios, achou que o mais belo era o de uma escrava caucasiana e partiu daí a invenção caucasiana, que ainda hoje é oficial e administrativa, apesar de todos os desmentidos dos estudos genéticos, da UNESCO declarar em 1950 que não há raças humanas e a multiplicidade de estudos do genoma desde 2000 mostrar que somos todos uma mistura de origens, felizmente. Se não, já uma parte da humanidade tinha sucumbido a doenças raras. No entanto, a marca ficou.
À escravatura seguiu-se o colonialismo, para Portugal com trabalho forçado até 1974. Nos EUA, mesmo após a abolição, a marca foi ficando como sinal de classes, a baixa. Não venham pensamentos primários dizer que há afrodescendentes que são ricos e ilustrados, e vide o casal Obama, e que há brancos pobres. Há. Mas quando se vai ver os estudos que aplicam grandes amostras e estatísticas válidas a maior percentagem de pobres são afrodescendentes, a maior percentagem sem cobertura médica são também eles e os chamados “latinos”. E a maior percentagem de vítimas da covid-19 são eles. E há diferenças nas universidades conforme o seu ranking e até conforme o objecto das teses. Felizmente, dos EUA vem o pior e o melhor, porque todos estes estudos têm origem nesse país. Curiosamente, os afrodescendentes têm alguma marca à vista, mas têm muito mais marca “branca”. É que os sucessivos escravocratas, exploradores, fazendeiros, não levavam consigo mulheres. Foi também de violação e submissão que se fez esta população.
Mas eis que levanta a cabeça, porque Floyd já não conseguiu levantar a dele (quanto ao nosso imigrante assassinado no aeroporto, estamos quietinhos, mas é paralelo). Juntam-se jovens “brancos” e a revolta alastra por 147 cidades dos EUA. Há polícias a pedir perdão de joelhos. Há tropa que não quer ser enviada para os Estados em revolta (é uma longa história o envio da tropa federal para os Estados nos tempos das grandes revoltas). O Capitólio é enfrentado pela multidão.
O que se passa neste momento já não é o anti-racismo sentimental. É a revolta dos de baixo e dos que com eles são solidários, como sempre aconteceu, contra Trump e a sua política. Contra as leis racistas que este Presidente foi recuperar depois de Obama ter acabado com elas. Contra o sindicato dos polícias que fala nos comícios a apoiar o Presidente.
É a revolta contra o sistema? Recuperando Marx, o que ele profetizou foi que o socialismo a caminho do comunismo se viria a dar numa sociedade desenvolvida e industrializada, alfabetizada. Infelizmente, por acasos políticos, a revolução deu-se num país de muitos camponeses e poucos operários, sem instrução. E correu mal. Houvesse agora nos EUA uma vanguarda e um programa alternativo que defendesse a liberdade, e aí sim, podiam tremer os “senhoritos”. A história é lenta, mas um dia há-de vir. E parece vir por aí. Para nos animar, neste tempo em que se agravam as desigualdades.

sábado, 13 de junho de 2020

CAÇANDO COMUNISTAS, POR MARIA PRESTES


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Luisa Costa Dias in facebook


Aos 90 anos de idade, depois de uma vida de lutas por justiça social e de ter criado meus filhos no exílio, ouço de figuras governistas a esdrúxula ideia de que o Brasil está ameaçado por comunistas.

A União Soviética, em que vivi boa parte dos meus melhores anos, desapareceu completamente, e com ela todo o campo socialista europeu. Cuba e Venezuela atravessam crises econômicas severas e estão centrados em seus próprios problemas internos. Do outro lado do mundo, a China, maior parceira comercial do Brasil, depois da pandemia tem agora toda uma economia para reconstruir, enquanto a Coreia do Norte permanece como um país sem grande influência no cenário mundial.

Mas na ausência de inimigos reais é necessário criar inimigos imaginários. Por isso, reviver no Brasil o antigo medo dos comunistas é imperioso para um governo que pretende desviar a atenção de suas próprias – e graves – falhas.

Na verdade, se formos pensar em termos históricos, muitos das pracinhas brasileiras que lutaram na Segunda Guerra Mundial, nas terras da Itália contra o fascismo, eram comunistas. Quando se dizia que em nosso país não havia uma única gota de petróleo, boa parte dos líderes que bancaram a afirmação de que nosso país tinha sim petróleo eram comunistas. Artistas como Cândido Portinari, o compositor José Siqueira, os escritores Graciliano Ramos e Jorge Amado foram membros do Partido Comunista do Brasil. Lutaram pelo que acreditavam ser certo: justiça social e uma economia mais igualitária.

Para quem trabalha no Palácio do Planalto, reside no Palácio da Alvorada ou recebe visitantes no Palácio do Itamaraty, vale lembrar que todos estes foram projetados pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer. Esse arquiteto símbolo do Brasil, mesmo sendo ateu, também projetou a Catedral de Brasília, bem como outras igrejas católicas, mesquitas, sinagogas e tempos evangélicos, pois nunca permitiu que suas convicções pessoais degenerassem em ódio ideológico. Na história do nosso país – um país plural, que convive com uma diversidade tão grande de credos e ideologias – os comunistas tiveram sim um papel na sua edificação.

Meu falecido marido, Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, dedicou sua vida a buscar condições melhores para o povo brasileiro. A melodia que ele mais entoou na vida foi o Hino da Bandeira, que aprendeu quando estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro: “Salve lindo pendão da Esperança / Salve, símbolo augusto da paz”. Ele lutou com tudo o que tinha para que o nosso verde e amarelo fosse símbolo da justiça social.

Precisamos ter senso crítico perante essa vontade política hoje presente de apagar a história do Brasil e criar inimigos inexistentes. Precisamos lembrar quem foram os comunistas brasileiros, quais foram as suas contribuições para a construção da nossa nação, e quais eram os seus ideais: a fraternidade e a igualdade comunitária.

Não há dúvidas de que na tentativa de construção do socialismo real ao redor do mundo houve falhas. Mas falhas, ao que a história nos aponta, houve em praticamente todos os regimes políticos que já existiram. E da mesma forma como a Igreja Católica não pode ser para sempre condenada por conta da Inquisição que perpetrou há séculos atrás, da mesma forma como seria absurdo estigmatizar eternamente o povo alemão por conta do Holocausto, também tirar o valor daqueles brasileiros que acreditaram ao longo da história em ideais igualitários de convivência humana é um erro.

Sigamos em busca de uma democracia plena, de um Estado laico voltado para as necessidades da população, no qual a justiça social prevaleça sobre os interesses escusos de uma minoria. E, por favor, sem inimigos inventados.

Publicado originalmente no Portal Vermelho

(Luiz Carlos Prestes e Maria Prestes com a família – Arquivo)

EXTRACTOS DA VIDA DE ALVARO CUNHAL - ANIVERSÁRIO DA MORTE DE ÁLVARO CUNHAL


ANIVERSÁRIO DA MORTE DE ÁLVARO CUNHAL

Álvaro Cunhal, o homem que recusou ser comum








Cioso da sua privacidade, e do sentido de verdade, nunca foi homem de paredes de vidro (por herança dos anos de clandestinidade, propósitos de conveniência política ou traço de temperamento.), rejeitava o culto da personalidade, sempre recusou colocar uma fotografia sua em cartazes eleitorais, não gostava de montras mediáticas, não expunha as companheiras, nem a filha, nem os netos. Mantinha o seu quotidiano recatado. E, no entanto, quem lidava com ele de perto sempre se comove ao lembrar a preocupação carinhosa com os outros, que tanto contrastava com a imagem de homem duro: desdobrava-se em atenções, indagava da saúde, do bem-estar, da família, dos filhos dos camaradas. Um véu de suposta aridez emocional que ocultava um homem cheio de afetos. Estudava certeiro as poucas entrevistas que concedia, sempre se recusou a autobiografar-se, e até a desmentir os dados fantasiosos que, volta e meia, se insinuavam. E o que não se sabia ao certo, a comunicação social sempre fez questão de realçar, alimentar especulações, insondáveis enigmas. Onde vivia, com quem vivia, que doença o atacava nos últimos anos. Mas ele proclamava a modéstia, uma certa obscuridade, vivia na heteronímia (na política, antes do 25 de Abril, foi Duarte, Daniel, António. e na literatura Manuel Tiago), mas ainda assim ou talvez muito por causa disto se foi criando o mito queCunhal sempre rejeitou. Recusando o culto, reforçou-o. A sua presença fascinava, hipnotizava, até os guardas da prisão embatucavam quando com ele se cruzavam.




Esta tendência para o disfarce, o segredo, um registo de vida quase espartana, as regras estritas, muito para além das necessárias, esta contumácia de guardador zeloso e meticuloso da sua vida privada, garantiram-lhe alguns voyeurismos intrometidos. Algumas biografias não desejadas. Alguns equívocos e perplexidades. Conta-se que, uma vez, lhe organizaram uma festa de aniversário-surpresa, na Soeiro Pereira Gomes.

Álvaro Cunhal recusou-se a apagar as velas, fechou-se num gabinete, o bolo foi recambiado, foram-se desgostosas as camaradas.

A sua obstinação pela luta antifascista, desde muito jovem, a abnegada ligação ao partido, trouxeram-lhe, para além da perseguição política, da clandestinidade e do exílio, e das inúmeras separações daqueles que mais amava, algumas desavenças familiares vindo da alta burguesia, Álvaro (filiado no PCP aos 17 anos) não era filho da classe operária (o pai era o reputado advogado, republicano e laico Avelino Cunhal, também pintor e escritor, a mãe católica ferverosa) mas, contavam amigos próximos, gostava de andar pela casa de fato de macaco para desespero materno.

Mercedes Cunhal perdeu três filhos: um para a política, dois para a tuberculose. Só 14 anos mais tarde nasceu a irmã mais nova, Eugénia, primeira tradutora de Tchekov, em Portugal.

A convivência com a mãe tornou-se fragmentada, ao ritmo dos desaparecimentos políticos, clandestinidades, prisões, isolamentos e exílio. Morreria antes do 25 de Abril, sem jamais o rever. Cunhal saiu de casa com 20 anos, trocou o conforto da alta burguesia, das criadas fardadas, da comida na mesa, pelo regime duro e despojado, imposto aos militantes comunistas, durante a perseguição fascista. O homem que gostava de Rembrandt, de Rodin, renunciou até à sua arte dizse que poderia ter ido muito mais longe, enquanto pintor e escritor por acreditar num dever patriótico e sentido revolucionário até ao fim. No centenário do seu nascimento, o PCP organizou uma exposição com fotos e factos inéditos, no Terreiro do Paço, com uma comissão de homenagem que inclui os mais altos e díspares vultos, um congresso, uma fotobiografia, e um comício de homenagem no Campo Pequeno no próximo domingo, 10 de novembro.

1 - 1937: A primeira prisão

Aos 23 anos, detido pela primeira vez, já a sua posição já estava bem firmada no PCP. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1931 (na mesma data em que se filia no PCP).Designado, enquanto Daniel, líder das Juventudes Comunistas Portuguesas, vai a Moscovo em 1935. Às insurreições operárias que acontecem por todo o País, em particular na Marinha Grande (18 de janeiro de 1934) e à Revolta dos Marinheiros (8 de setembro de 1936), o regime de Salazar reage ferozmente. É criado o campo de concentração de Tarrafal, para onde é enviado Bento Gonçalves, o então secretário-geral do PCP (sobreviverá apenas sete anos). Em Espanha, o jovem Cunhal participa, ao lado dos comunistas espanhóis, na luta contra a sublevação fascista. Apanhado numa cilada de um provocador infiltrado, é preso pela PVDE (predecessora da PIDE) e sujeito às mais bárbaras sevícias: dois meses de incomunicabilidade, espancado a murro e com cavalo-marinho, obrigado a caminhar depois de feridas e inchadas as plantas dos pés. Perdeu os sentidos, levou cinco dias até dar acordo de si. Em casa, com apenas 10 anos, a irmã Eugénia vê a mãe a lavar a roupa ensanguentada do irmão, enviada do Aljube. A mãe dizia-lhe que eram bichos da cadeia que lhe mordiam. Enviado para Penamacor, na qualidade de "soldado corrécio", entrou em greve da fome, por duas semanas, até ser enviado para o hospital de Coimbra.

2 - 1942: A reorganização do PCP

Decapitadas as cúpulas do partido, é a Cunhal quem cabe segurar-lhe as rédeas. Após nova prisão, dá-se a célebre defesa da sua tese sobre o aborto (preparada e concluída na cadeia), que, apesar do arrojo do tema e de um dos arguentes ser Marcello Caetano, foi aprovada com 16 valores. Salazar, na sua falsa neutralidade, apoia Hitler e Mussolini à custa do agravamento das condições de vida dos portugueses. É o tempo das senhas de racionamento, das grandes fomes, da exploração dos trabalhadores e do desemprego, das brutais condições de empobrecimento e das grandes greves, também. São os tempos dos passeios doutrinários, no Tejo, casas conspirativas flutuantes, com Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol e Dias Lourenço.

Depois de solto e na clandestinidade, Álvaro (agora Duarte) assume a liderança partidária. Com menos de 30 anos, tomava para si as maiores responsabilidades. A partir daqui, o partido torna-se em AC e DC (antes e depois de Cunhal): disciplina reforçada, mais regras, maior rigidez. É ele quem redige o opúsculo Se Fores Preso Camarada, com instruções para os interrogatórios, resistência à tortura e para não denunciar nunca.

CASA ONDE CUNHAL VIVEU NA CLANDESTINIDADE

3 - Anos 40: A clandestinidade

Nunca se referindo, em particular, às condições em que viveu, Álvaro Cunhal foi deixando pistas, nos seus livros.

Nomeadamente em 5 Dias, 5 Noites (adaptado ao cinema, por Fonseca e Costa, em 1996), sobre a fuga a salto de um jovem citadino por uma fronteira nortenha e a estranha relação com o seu rural passador (interpretados por Paulo Pires e Vítor Norte). Mas é sobretudo no romance Até Amanhã, Camaradas (que depois da série televisiva de Joaquim Leitão se estreará em sala, como filme, a 7 de novembro) que se recolhe alguns fragmentos da vida na clandestinidade destes "revolucionários profissionais". O livro de Manuel Tiago mostra a fome, crianças de ventre dilatado, mulheres descarnadas, trabalhadores escolhidos como escravos, nas praças de jorna. Quanto aos clandestinos, como se não lhes bastasse o perigo, a perseguição e a prisão sempre iminente, a sobrevivência era dura, não tendo, ainda por cima, acesso às senhas de racionamento e ao mercado negro. O livro elucida-nos sobre o quotidiano dos clandestinos: a monotonia das tarefas partidárias, os quilómetros calcorreados de bicicleta, a solidão, o constrangimento das mulheres, tantas vezes confinadas a meras guardiãs das casas clandestinas, os casais forçados que, sem se conhecerem, tinham de partilhar a cama e rotinas, o absurdo de certas regras conspirativas como ter de fazer a barba todos os dias ou nunca apanhar frutos das árvores.

4 - 1949: A longa prisão

Aos 35 anos, Cunhal é apanhado na casa clandestina, no Luso, juntamente com Sofia Ferreira e Militão Ribeiro.

O pai, Avelino, coloca um anúncio em código no jornal, para advertir o partido de que Duarte (o nome que então usava) estava preso. Já não o torturaram não valia a pena. Mas pensa-se, e este ainda foi um dado pouco explorado pelos historiadores, que a PIDE tinha a intenção de eliminar Cunhal, no momento. Se não o fez, então, tentou que soçobrasse por força de uma das mais inclementes provações carcerárias. Indício disso são as cartas com inventários dos seus bens, agora reveladas na Fotobiografia das Edições Avante!, admitindo a hipótese de morrer.

Entre elas, um comovente pedido ao diretor da penitenciária, solicitando apanhar um ramo de flores dos jardins da cadeia para serem entregues à mãe aniversariante. Mantiveram--no oito anos incomunicável, numa cela de dois por quatro metros, na Penitenciária de Lisboa, sem papel sequer para tomar apontamentos e preparar a sua defesa em julgamento.

Militão Ribeiro sucumbiria, vítima das cruéis condições prisionais: uma foto revela o seu corpo num estado de subnutrição impressionante. Entretanto, Cunhal elabora a sua longa defesa, recorrendo a um método de memorizar e projetar mentalmente os tópicos, no lajedo da cela. A defesa terminaria assim: ". então que se sentem os fascistas no banco dos réus, então que se sentem no banco dos réus os atuais governantes da nação e seu chefe Salazar." É perante o tribunal plenário que se declara "filho adotivo da classe operária". Após o julgamento, atenuado o regime de privações, dedica-se, tenazmente, à pintura (são desta época os famosos Desenhos de Prisão), traduz o Rei Lear, de Shakespeare, escreve Até Amanhã, Camaradas, e 5 Dias, 5 Noites e A Arte, o Artista e a Sociedade. O trabalho, o estudo, a arte tornam-se forma de resistência. Entretanto, a figura de Álvaro Cunhal ganha contornos internacionais, Neruda dedica-lhe o poema A Lâmpada Marinha, Jorge Amado apela do outro lado do Atlântico, chovem pedidos de amnistia.

Álvaro Cunhal torna-se uma personalidade maior. Porventura, maior até que o próprio partido.



5 - 1960: A grande evasão




A mais ousada fuga coletiva das prisões políticas portuguesas não só constituiu um reforço das cúpulas do PCP (entre os dez fugitivos do forte de Peniche estavam alguns dos seus mais altos dirigentes), como dela resultou uma grande humilhação de Salazar. Além de um enorme gáudio nas parangonas do Avante!.

Nas barbas do regime, da inexpugnável fortaleza, uma das mais bem guardadas prisões do fascismo (Cunhal tinha sido para aí transferido em 1956), graças a uma articulação metódica, aos pormenores estudados com a perícia de relojoeiro, conexões cá fora, cumplicidade de um guarda, lá dentro, um carcereiro narcotizado e uma dose imensa de coragem, dez presos evadem-se. Nas celas vazias, ficou a tocar a Sinfonia Patética, de Tchaikovsky. A aura de Cunhal cresceu ainda mais até à sua dimensão lendária.

Tanto que, na descida, através de uma corda, pelas dezenas de metros das muralhas, Cunhal traz consigo, como Homero ou Camões, escondidos num colete fabricado para o efeito, os manuscritos de Até Amanhã Camaradas (na altura, ainda intitulado A Mulher do Lenço Preto na fuga acabou por se perder uma das partes, que o autor mais tarde reconstituiu). Também nesta fase se abre uma porta na vida familiar. Escondido numa casa clandestina, no Penedo, Sintra, Álvaro Cunhal, então com 47 anos, conhece Isaura Moreira, com 18, que seria a mãe da sua única filha, Ana (nascida a 25 de dezembro do mesmo ano). Em março de 1961, Cunhal é eleito secretário-geral do partido e parte, em seguida, para o exílio. A família instala-se na capital soviética, até se separarem, em 1965.

Isaura e Ana viajam para Bucareste. Isaura trabalha na Rádio Portugal Livre e Ana receberá frequentes visitas do pai. Ana terá dois filhos com quem o avô manterá muito afetuosas relações (apesar das distâncias: viviam entre a casa do pai, na Austrália, e a da mãe, na Bélgica). Mais tarde, nasce um terceiro neto de Cunhal de um outro relacionamento de Ana Jonas de Ro, internacionalmente conceituado artista plástico, que viveu em Berlim e agora em Londres, e que tem ligações a Hollywood, nomeadamente através do blockbuster Cloud Atlas.

6 - 1961: O Exílio






A resistência organiza-se, agora, a partir do estrangeiro. Define-se a estratégia do PCP para o derrube do fascismo e instalação de um regime democrático, em Portugal.

Cunhal estabelece contactos com os principais líderes do movimento comunista internacional, aprofunda relações, pontes políticas com a restante oposição antissalazarista (agregando socialistas, liberais, católicos, republicanos e monárquicos) dão-se em Argel e Praga as célebres reuniões com Humberto Delgado, e com os movimentos de libertação das colónias.

Por outro lado, aumenta o seu comprometimento com a linha pró-soviética. Publica o famoso documento Rumo à Vitória, no qual, em oito pontos, estabelece as prioridades para um Portugal democrático: "Destruir o fascismo; liquidar o poder dos monopólios; realizar a reforma agrária; elevar o nível de vida dos trabalhadores; democratizar a instrução e cultura; libertar Portugal do imperialismo; direito à imediata independência das colónias; seguir uma política de paz e amizade com todos os povos."

7 - 1974: O 'Dia Inicial'




O dia 25 de abril apanha-o em Paris. A disciplina impõe-se à emoção e não o faz desmarcar uma reunião. O último Avante! clandestino, de abril de 1974 aliás, com um grafismo notável tem três parangonas inesquecíveis: "Escalada da Tortura"; "Não Dar Tréguas ao Fascismo"; "Aliar à Luta Antifascista os Patriotas das Forças Armadas". Nesse mesmo dia, a comissão executiva do PCP apela ao povo para "que se una e lute para que o fascismo seja liquidado para sempre e instauradas as liberdades democráticas! Para que cesse imediatamente a guerra colonial e acabe o colonialismo! Para que Portugal se liberte do domínio dos monopólios e do imperialismo estrangeiro!". Álvaro Cunhal tem direito a uma receção calorosa, a 30 de abril, no aeroporto de Lisboa: as suas primeiras palavras, aos microfones das rádios e televisão, são: "Confiança, confiança." Ao fim de 40 anos de luta, prisões, privações, clandestinidade e exílio, Eugénia Cunhal deixa-se ficar atrás da multidão: o último abraço pertence-lhe.

Soares também lá esteve: "Cunhal entre um soldado e um marinheiro, em cima de um tanque lembrava Lenine, no seu regresso." Da Portela segue diretamente para uma reunião com Spínola, ovacionado nas ruas. O general do monóculo, Presidente da Junta de Salvação Nacional, disse-lhe que o Avante! deveria sair sem a foice e o martelo e sem se intitular órgão central do PCP. Ao que Cunhal responde: "Não sei como é que vão fazer isso, nem a PIDE conseguiu." A cena do soldado e do marinheiro repetirse-á num 1.º de Maio estrondoso de aclamação popular, no então estádio da FNAT, em Alvalade, quando Soares e Cunhal se voltam a encontrar, já com alguma frieza. Nas décadas que se seguiram, até hoje, é reconhecida ao PCP a preocupação com o estrito cumprimento da lei e respeito institucional. Terá sido uma herança deÁlvaro Cunhal, que nunca tentou chegar ao poder pela via não legal, como se chegou a insinuar.

Dizem que a irredutibilidade dele liquidou o partido e a sua força eleitoral: há quem defenda exatamente o contrário. No entanto, nunca perdoaria as dissidências.

8 - 1992: Passagem de testemunho

Álvaro Cunhal quis correr, ele mesmo, a cortina do seu próprio espetáculo, embora nunca se tenha retirado verdadeiramente da política. Com 79 anos, 31 de secretário-geral, rende a guarda. Sucede-lhe Carlos Carvalhas, no XIV Congresso, em Almada. Para o acolher é criado um cargo especial: o de presidente do Conselho Nacional. O último discurso, enquanto líder, dura duas horas e, no final, é aplaudido durante mais de três minutos. Há lágrimas na assistência. "Passei uma dúzia de anos na prisão, 11 seguidos e oito completamente isolado numa cela, isto é muito duro mas houve companheiros meus que estiveram mais de 20 anos presos. Fui torturado quase até à morte, mas o certo é que houve alguns mortos na tortura, porque se recusaram a fazer declarações. Estive mais de 10 anos clandestino, mas houve camaradas meus que estiveram mais de 20, mais de 30, a ser perseguidos pela polícia, sem nunca desistir da luta pela liberdade em Portugal."

9 - 1994: Autoria








Se dúvidas restassem ficou eliminado o tabu literário. Cunhal assume a autoria de todas as obras assinadas com o pseudónimo Manuel Tiago. Logo em dezembro de 1975, foi editado Até Amanhã, Camaradas, com uma nota inicial em que se esclarecia que o original datilografado fora encontrado no meio de um arquivo, com uma pequena folha apensa e agrafada, onde se lia, "em rabisco apressado, o nome de Manuel Tiago, pseudónimo, de certeza. Foram consultadas pessoas que poderiam dar, eventualmente, indicações, conduzindo à identificação.

Sem resultado.

O autor fica assim merecendo o título de 'homem sem nome', tal como as personagens do seu livro". Esta foi a mais ambígua e discutida das suas ficções.

Sendo um romance neorrealista, transgride-lhe as regras: não se limita ao retrato e à denúncia das condições de vida do proletariado e camponeses.

Pelo contrário, o foco desvia-se para o duro quotidiano dos militantes comunistas na clandestinidade, as fugas, as prisões, a morte, as provações e privações. Mesmo assim, Cunhal continuou sempre a negar que aquelas circunstâncias narradas se baseassem em experiências pessoais baseavam-se sim, dizia, nas vivências compósitas de inúmeros camaradas.

Manuel Gusmão afirma estarmos "perante um dos poucos romances de herói coletivo da literatura portuguesa".

Urbano Tavares Rodrigues não hesitou em colocá-lo na prateleira das obras maiores do neorrealismo.

10 - 2005: A Morte




A morte de Álvaro Cunhal, já bastante debilitado, e de visão muito diminuída, embora ainda lúcido, é anunciada pelo Comité Central do PCP com "profunda mágoa e emoção", às 5 horas e 54 minutos do dia 13 de junho de 2005. Dois dias depois, realiza-se um funeral de Estado. Decretou-se o luto nacional, e milhares de pessoas, em cortejo fúnebre, percorreram, durante mais de duas horas, a avenida desde a Praça do Chile até ao Alto de São João. Agitavam-se cravos, muitas bandeiras vermelhas e palavras de ordem, jorravam muitas lágrimas e a consternação era visível. Foi a sua última grande manifestação de massas. Antes de a urna entrar no forno crematório, entoaram-se a Internacional e o Hino Nacional.



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